Por Jane Felipe Beltrão (UFPA)
vídeo em:
https://www.youtube.com/channel/UCku6jMkVku-g1atjk3j-QBQ?view_as=subscriber
Discutir medo, temor e pânico é meu objetivo, pois as autoridades sanitárias parecem ignorar o que acomete as pessoas em tempo de sucessivas pandemias, antes, durante e após o evento. O uso dos vocábulos e a sequência não é aleatória, ela me parece ser a ordem da surpresa diante daquilo que consideramos improvável!
Duas cenas diferenciam e separam a expressão da pandemia na Europa e na América Latina. A primeira diz respeito aos caminhões enfileirados, levando os corpos de italianos/as para longe. A segunda é a visão de Guaiaquil (Equador) devastada pela COVID-19 e os corpos espalhados pela cidade. A visão das cenas para muitas pessoas seria improvável. Ver o evento ao largo mete medo, gera temor, mas ainda não é o pânico. Olhar as covas enfileiradas e abertas em São Paulo, assusta! O pânico chega com os corpos de pessoas ceifadas pelo coronavirus, convivendo com os doentes, ainda com vida, em Manaus/Amazonas. O fato assuste aqueles/as que jamais ouviram as narrativas dos sobreviventes de Eldorado dos Carajás, o Massacre da Curva do “S”, que fez 24 anos dia 17 de abril de 2020.
As cenas me permitem deixar de lado as categorias e passar a discussão dos estados usando, como suporte de argumentação, as pandemias de Cólera dos séculos XIX (1855) e XX (1991) correlacionando-as à Pandemia COVID-19 que afetaram/a o mundo de forma avassaladora.
A História nos auxilia a percorrer caminhos que com o tempo somos levadas/os a olvidar, pois as gerações se sucedem e, a memória coletiva, “sabiamente” procura esquecer os acontecimentos considerados desagradáveis, os quais só voltam a emergir em momentos que a História “parece se repetir”. O coronavirus produz uma situação extrema sobre a qual algumas pessoas se recusam a enfrentar e, outras, por dever de ofício – historiadoras/es e antropólogas/os – insistem em recordar, pois as pandemias sempre ceifam a vida de muitas pessoas, acometem outras tantas pessoas e a disputa política se faz presente. Ontem, como hoje, as situações se assemelham guardadas as diferenças entre elas e o contexto em que se desenrolam.
Ofereço, agora, alguns elementos referentes as três pandemias, para que – guardadas as devidas proporções e os contextos – pensemos no medo e no terror do contágio que produz o pânico. Pânico incontrolável, pois a população não confia nas autoridades sanitárias, as quais carecem de credibilidade.
Nos três episódios mencionados, algumas questões se fazem presente.
1. As autoridades sanitárias, da província no século XIX; e da república no século XX e XXI negam o início do flagelo.
2. No século XIX e no século XXI não havia tratamento conhecido para pandemia. No século XX havia, mas as pessoas acometidas pela doença não acreditavam na possibilidade.
3. As autoridades-mores de saúde no século XIX, presidente da Junta de Higiene e nos séculos XX e XXI os Ministros da Saúde não foram poupados.
4. As pandemias não são democráticas, como se costuma dizer. Nos três eventos as classes perigosas – como se dizia no século XIX – foram/são as pessoas cujas vidas são precárias e não valem o luto, como ensina Judith Butler (2017).
Afinal,
“[a] dor é uma experiência terrível. Quem consegue atravessar e vencer essa barreira, torna-se mais forte e mais habilitado a dar o suporte necessário a quem nunca passou por uma tal experiência. A dor enfraquece o corpo, mas fortalece a alma. Habilita a mente a compreender realidades novas. A experiência de dor de uns pode ajudar a consolar e a superar a dor dos outros. A África sempre chorou na dor solitária de um continente. O coronavírus, covid 19, trouxe um choro de dimensão planetária. O mundo pode agora compreender a dor secular que os africanos sentiram pelos massacres e genocídios de outrora”. (Chiziane, 2020, sic.)
Para ler mais
Bardet, Jean-Pierre; Bourdelais, Patrice; Guillaume, Pierre; Lebrun, François & Quétel, Claude. 1988. Peurs et Yerreurs face à la contagion – Choléra, tuberculose, syphilis XIXe- XXe siècles. Paris: Librairie Arthème Fayard.
Beltrão, Jane Felipe. 2004. Cólera: o flagelo da Belém do Grão-Pará. Belém: UFPA/Goeldi.
Butler, Judith. 2015. Quadros de Guerra, quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Chiziane, Pauline. 2020. “Carta a Nataniel Ngomane” In: Pessoa. Disponível em: https://www.revistapessoa.com/artigo/2990/carta-a-nataniel-ngomane?fbclid=IwAR0KT3avfSBD8IW32A9csxcx_0h8YIKjmd_LZcuA0XEyBGy7aPuOOCQIOGA. Acesso em: 21.abr.2020.
Garrett, Laurie. 1995. A próxima peste: as novas doenças de um mundo em desequilíbrio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Esse blog é fruto das ações do grupo de pesquisa População, Família e Migração na Amazônia (RUMA). Aglutina um conjunto de textos produzido para possibilitar um diálogo entre o presente e o passado, tendo como tema central a Epidemia.
sexta-feira, 24 de abril de 2020
terça-feira, 21 de abril de 2020
SABERES TRADICIONAIS E SABER CIENTÍFICO SOBRE AS EPIDEMIAS EM BELÉM 1650-1760
Por Décio de Alencar Guzmán (UFPA)
Em 1741 um jovem estudante português de vinte anos de idade chega em São Luiz do Maranhão para completar seus estudos na Missão jesuítica do vale amazônico. Seu nome é João Daniel. Ele vem de Lisboa. Ele quer ser padre jesuíta. Vai ser ordenado sacerdote em 1750 e faz seus votos perpétuos na Companhia de Jesus em 1757 com trinta e cinco anos de idade. Do tempo que permanece entre os Colégio dos padres em Belém e São Luiz, ele vive oito anos viajando pelos rios da Amazônia como missionário entre os índios, visitando as aldeias de missão, as fazendas dos jesuítas (Ibirajuba) e conhece as qualidades físicas da terra amazônica de muito perto. Os padres têm mais de sessenta lugares de missão espalhados pelo rio Amazonas e afluentes nessa época. Se não as visitou pessoalmente, João Daniel tem notícias de todas elas através dos seus companheiros de missão.
Assim é que através dos outros jesuítas e das suas próprias viagens João Daniel ganha informação atualizada sobre a quase totalidade do território coberto pelas missões. Seu interesse é a realidade da terra que o acolhe, porque é nomeado pelos superiores como cronista oficial da missão. Ele a descreve, a observa diretamente, coleciona, identifica, repertoria, analisa, classifica o mundo que o rodeia. É um trabalho intenso e contínuo para conhecer a geografia da Amazônia, seu clima, seus rios, madeiras e ervas, frutos comestíveis, seus animais para caça e criadouro, suas ilhas e lagos, os peixes, insetos e pragas, seus minérios.
João Daniel percebe os abusos dos portugueses na convivência com os nativos no momento das epidemias. Então registra por escrito o que viu. Em 1757 é expulso para Lisboa por ordem conjunta do Governador e do Bispo do Pará. É o momento da supressão do domínio jesuítico sobre a fronteira amazônica pelo primeiro Ministro do rei D. José I, o Marquês de Pombal. Em Lisboa, é João Daniel confinado com outros jesuítas nos cárceres de Almeida e de São Julião da Barra, onde morre em 9 de janeiro de 1776. Dos anos na prisão deixa mais de 766 páginas manuscritas às quais intitula “Tesouro Descoberto no Rio Amazonas”. Uma série de seis tratados interligados com anotações que se posicionam na dinâmica do campo cultural da ciência jesuítica do século XVIII: no cruzamento entre o discurso científico europeu, as escolas jesuíticas e o contexto político colonial mais amplo.
Como jesuíta, João Daniel tem o dever de catequizar os índios. É sua missão, sua vocação. Ele visita alguns grupos indígenas ao longo dos rios e recolhe informação sobre muitos deles entre 17. Investiga seus costumes, suas qualidades morais e traços humanos: suas guerras, religiões, línguas, habilidades e realizações manuais e intelectuais. Mas sobretudo dois aspectos da vida deles chama a atenção de João Daniel: as doenças e as epidemias. Mas por quê? Segundo ele, desses flagelos os indígenas são “muito mortais”, ou seja, daí vêm a maior razão de sua extinção em massa.
Quais são então essas doenças? De que os índios morrem coletivamente?
A cadeia mais geral das moléstias que os atacam inaugura-se com os resfriamentos (gripes). Daí provêm, em segundo lugar, os catarros que degeneram em esquinências (anginas, com inflamações sufocantes da garganta e da faringe), garrotilhas (inflamação aguda da mucosa da laringe, traqueia e brônquios, de origem viral, sobretudo em lactantes e crianças pequenas) e pleurises (inflamação aguda da pleura, de origem bacteriana). Logo todos se contagiam e morrem nalguns dias. João Daniel chama atenção para o efeito psicológico nefasto destas epidemias: “(...) são muito desanimados, e em apreendendo que morrem é infalível a morte”. Em terceiro lugar vêm as bexigas (varíola). Esse mal abate sobretudo índios e negros, ainda mais que aos brancos, embora ele tampouco não poupe alguns europeus. Por último vêm o sarampão (erupção cutânea aguda avermelhada provocada por vírus ou coco) seguido de grandes diarreias que extermina milhares de indivíduos.
Os ciclos de epidemias se repetem em média a cada 8 anos a partir de 1690: 1621 (varíola e sarampo), 1649/1652 (varíola), 1662 (varíola e sarampo), 1690 (varíola e sarampo), 1695 (varíola), 1724/1725 (varíola e sarampo), 1737/1740 (varíola e sarampo), 1748/1749 sarampo (“sarampo grande”) e 1790 sarampo (“sarampo grande”).
Os tempos de epidemias são crises que revelam todo o mecanismo social por dentro, sua estrutura de explorações, oportunismos e injustiças. Na Amazônia dos séculos XVII e XVIII os nativos são essenciais para a vida econômica funcionar. A sociedade colonial vive do seu sangue. São também eles os mais visados pela morte. As epidemias são seletivas, porque dizimam sobretudo os pobres. Na epidemia de 1748 milhares de indígenas fogem de Belém, Vigia, Cametá e outro centros porque a peste é essencialmente urbana. Vão para os matos do interior, longe dos brancos portugueses. O padre João Daniel revela os dois principais vetores das doenças para os índios: os militares e os comerciantes. Estes usam todas as manobras para atender “seus negócios e conveniências”, inclusive o abuso de poder para movimentar a economia e não perder dinheiro. Situação em tudo semelhante à atual epidemia de Coronavírus.
Os usos de remédios para curar e tratar estas doenças revelam a tensão entre o saber nativo (“remédios caseiros”) e o saber científico europeu (“remédios da arte médica”). João Daniel era “físico” conhecedor das artes médicas. Ele cita em seu “Tesouro” dois receituários famosos no século XVIII: O “Erário Mineral” (Lisboa, 1735) e o “Boticário do Amazonas”. Conhece também a famosa “Pharmacopea Lusitana” (Lisboa, 1704). Em suas terapias para os catarros e as outras doenças João Daniel prescreve os suadouros e as sangrias para expelir o frio do corpo e excitar o calor em acordo com as teorias europeias dominantes hipocrático-galênicas da época. Porém na composição dos remédios sabe valorizar os remédios caseiros: aguardente da cabeça, o chá da raiz de pajé merioba, o extrato de alcaçuz bravo, as castanhas de cavalo frescas, o cipó padú, erva de santa maria, andiroba, copaíba, e a lista é grande.
João Daniel zomba de um português teimoso por não acreditar nas propriedades medicinais dos remédios caseiros dos índios do Pará quando sofre com dores de catarros. O português diz preferir os poderes curativos das artes médicas europeias e despreza as indígenas por julga-las ineficazes. Após dias de sofrimento com os catarros, o português cede a teimosia e usa as castanhas de cavalo frescas borrifadas com água, obtendo a cura. “Cabeçudo”, diz o jesuíta, já teria experimentado alívio se não fosse obstinado.
João Daniel não está só como “físico”, há muitos outros jesuítas especialistas das artes médicas na missão do Maranhão: o irmão leigo Manoel de Andrade, irmão Francisco Cabral, irmão Rafael Cardoso, irmão Domingos Coelho, irmão André da Costa, irmão Clemente Ferreira, padre Manoel da Fonseca, irmão Francisco da Gaia, irmão Manoel Girão, padre Francisco Gonçalves, irmão Romão José, irmão Manuel Lopes, irmão Caetano de Oliveira, padre João Carlos Orlandini, padre António Pereira, irmão João Pereira, irmão José Pereira, irmão Manuel Pereira, padre Luís Pinheiro, irmão Manuel Rodrigues, irmão António Vieira , todos farmacêuticos e enfermeiros.
Através do tratado de João Daniel e das cartas trocadas entre os missionários do Pará com os seus superiores de Roma ou Lisboa, aprendemos como os jesuítas agem nos tempos de epidemia e como a Companhia de Jesus coordena suas atividades quando as comunicações por barco ainda são restritas e difíceis. Vemos nesses documentos que o fatalismo e a busca pela abnegação geralmente acompanhavam surtos das doenças: alguns jesuítas encontraram consolo e oportunidade de “morrer bem” (como mártires), principalmente se a doença é contraída por meio de serviços aos aflitos. Outros procuram abordar os sintomas das doenças e preservar indivíduos saudáveis de seus estragos. Esse pragmatismo, derivado das ordens de Inácio de Loyola para evitar penitências corporais excessivas e preservar o corpo para melhor servir a Deus, é interpretado por alguns como um sinal de compromisso religioso fraco. A ordem rival dos franciscanos atrai grande crédito nessa época pelas suas incursões suicidas nos Lazaretos (hospitais), onde os doentes aguardam a morte. Já a relutância dos jesuítas em pôr em risco igualmente os seus padres e irmãos enfermeiros é interpretada pelos colonos portugueses e pelos índios como covardia e amor excessivo a esse mundo.
Até que ponto os jesuítas são "modernos", ou secularizados e empíricos, na sua abordagem das doenças epidêmicas? Os documentos revelam que o compromisso religioso jesuíta não oculta o que poderíamos interpretar como uma perspectiva "científica". A teoria médica jesuíta distingue entre causas primárias e secundárias. A ação divina produz a peste como advertência ou punição da humanidade desviada pelo pecado. Os jesuítas promovem os remédios religiosos “padrão”: a conversão, a oração e a penitência. Mas as causas secundárias, incluindo fatores naturais e artificiais, como ar pestilento, a água suja e a aglomeração de pessoas afetadas pedem diferentes respostas terapêuticas, mudanças na dieta e condições físicas para a remoção daqueles vulneráveis a doenças. Os jesuítas estão cientes de que a mortalidade pode ser limitada por ação corretiva rápida, muitos jesuítas estão convencidos de que a ajuda física é tão importante como o socorro espiritual.
Nos séculos XVII e XVIII se afirma na Europa um tipo de saber científico classificado pelo nome de história natural. Este saber é um embrião das atuais ciências da vida, tal como as chamamos hoje: a biologia (e suas ramificações específicas: a zoologia e a botânica), a genética, a anatomia, as neurociências, etc. Essa história natural se encarregou de estabelecer princípios do conhecimento a serem definidos, explicados e demonstrados sobre as semelhanças e diferenças entre os seres, sua estrutura visível, suas características específicas e gerais, sua possível classificação na ordem dos seres vivos, as descontinuidades que os separavam e as transições que os uniam. A história natural foi um saber ordenador, classificador, gramatizador. Foi um saber positivo para o qual os homens ao seu serviço deviam construir princípios e causas coerentes dos fenômenos naturais, fazer descrições exatas desses fenômenos, confirmar sua existência, desenvolver teorias sobre eles. As Academias de Ciências estatais e oficiais foram o lugar institucional de produção e legitimação política e social da história natural. Roma teve a sua Academia em 1603, a Alemanha (Berlim) em 1652, na França a Academia fundou-se em 1666, a Prússia em 1700, Portugal em 1779.
O Estado promove os primeiros passos da sua biopolítica. As epidemias são o momento de aplicação dessa biopolítica. Um exemplo disso provém das medidas de isolamento, quando se declara oficialmente a peste numa cidade no século XVII, de acordo com um regulamento resumido por Michel Foucault: decreta-se o policiamento espacial estrito, o fechamento da cidade e das suas estradas, a proibição de sair sob pena de morte, divisão da cidade em quarteirões onde se estabelece o poder de um intendente. Cada rua é posta sob a autoridade de um prefeito; ele a vigia; se deixar seu posto, será punido com a morte. No dia designado, ordena-se a todos que se fechem em suas casas: é proibido sair sob pena de morte. O mesmo prefeito vem fechar por fora a porta de cada casa; leva a chave consigo, e a entrega ao intendente do quarteirão; este a conserva até o fim da quarentena. Cada família deve fazer as suas provisões, mas para o pão e o vinho são preparados entre a rua e o interior das casas pequenos canais de madeira, que permitem fazer chegar a cada um a sua ração, sem comunicação entre fornecedores e os habitantes; para a carne, o peixe e as verduras utilizam-se roldanas e cestas. Se for muito necessário sair das casas, isso se fará por turnos, e sem qualquer encontro. Só circulam os prefeitos, os intendentes, os soldados da guarda e também entre as casa infectadas, de um cadáver ao outro, os “coveiros”, que tanto faz se morrem ou não: é “gente vil, que leva os doentes, enterra os mortos, limpa e faz muitos ofícios vis e abjetos”. A inspeção funciona sem parar. “Um corpo de milícia; a comandado por oficiais e gente do bem”, guardas nas portas, na prefeitura e em todos os bairros pra tornar mais pronta a obediência do povo, e mais absoluta a autoridade dos magistrados, “assim como para vigiar todas as desordens, roubos e pilhagens”. (...) essa vigilância se apoia num sistema de registro permanente: relatórios dos síndicos aos intendentes, destes aos almotaceis e ao prefeito. No começo da “apuração” se estabelece o papel de todos os habitantes (...): se anotam “o nome, a idade, o sexo, sem exceção de condição” (...). Tudo o que é observado durante as visitas, mortes, doenças, reclamações, irregularidades, é anotado e transmitido aos intendentes e magistrados. Estes tem o controle dos cuidados médicos e um médico responsável; (...) O registro do patológico deve ser constante e centralizado. A relação de cada um com sua doença e sua morte passa pelas instâncias do poder, pelo registro que delas é feito, pelas decisões que elas tomam.
Este é um regulamento de isolamento típico da cidade de Vincennes no século XVII. Ele descreve as providências oficiais por ocasião da peste. O nosso presente já está prefigurado aí. Mas quais são as diferenças entre nós homens do século XXI e eles?
Em 1741 um jovem estudante português de vinte anos de idade chega em São Luiz do Maranhão para completar seus estudos na Missão jesuítica do vale amazônico. Seu nome é João Daniel. Ele vem de Lisboa. Ele quer ser padre jesuíta. Vai ser ordenado sacerdote em 1750 e faz seus votos perpétuos na Companhia de Jesus em 1757 com trinta e cinco anos de idade. Do tempo que permanece entre os Colégio dos padres em Belém e São Luiz, ele vive oito anos viajando pelos rios da Amazônia como missionário entre os índios, visitando as aldeias de missão, as fazendas dos jesuítas (Ibirajuba) e conhece as qualidades físicas da terra amazônica de muito perto. Os padres têm mais de sessenta lugares de missão espalhados pelo rio Amazonas e afluentes nessa época. Se não as visitou pessoalmente, João Daniel tem notícias de todas elas através dos seus companheiros de missão.
Assim é que através dos outros jesuítas e das suas próprias viagens João Daniel ganha informação atualizada sobre a quase totalidade do território coberto pelas missões. Seu interesse é a realidade da terra que o acolhe, porque é nomeado pelos superiores como cronista oficial da missão. Ele a descreve, a observa diretamente, coleciona, identifica, repertoria, analisa, classifica o mundo que o rodeia. É um trabalho intenso e contínuo para conhecer a geografia da Amazônia, seu clima, seus rios, madeiras e ervas, frutos comestíveis, seus animais para caça e criadouro, suas ilhas e lagos, os peixes, insetos e pragas, seus minérios.
João Daniel percebe os abusos dos portugueses na convivência com os nativos no momento das epidemias. Então registra por escrito o que viu. Em 1757 é expulso para Lisboa por ordem conjunta do Governador e do Bispo do Pará. É o momento da supressão do domínio jesuítico sobre a fronteira amazônica pelo primeiro Ministro do rei D. José I, o Marquês de Pombal. Em Lisboa, é João Daniel confinado com outros jesuítas nos cárceres de Almeida e de São Julião da Barra, onde morre em 9 de janeiro de 1776. Dos anos na prisão deixa mais de 766 páginas manuscritas às quais intitula “Tesouro Descoberto no Rio Amazonas”. Uma série de seis tratados interligados com anotações que se posicionam na dinâmica do campo cultural da ciência jesuítica do século XVIII: no cruzamento entre o discurso científico europeu, as escolas jesuíticas e o contexto político colonial mais amplo.
Como jesuíta, João Daniel tem o dever de catequizar os índios. É sua missão, sua vocação. Ele visita alguns grupos indígenas ao longo dos rios e recolhe informação sobre muitos deles entre 17. Investiga seus costumes, suas qualidades morais e traços humanos: suas guerras, religiões, línguas, habilidades e realizações manuais e intelectuais. Mas sobretudo dois aspectos da vida deles chama a atenção de João Daniel: as doenças e as epidemias. Mas por quê? Segundo ele, desses flagelos os indígenas são “muito mortais”, ou seja, daí vêm a maior razão de sua extinção em massa.
Quais são então essas doenças? De que os índios morrem coletivamente?
A cadeia mais geral das moléstias que os atacam inaugura-se com os resfriamentos (gripes). Daí provêm, em segundo lugar, os catarros que degeneram em esquinências (anginas, com inflamações sufocantes da garganta e da faringe), garrotilhas (inflamação aguda da mucosa da laringe, traqueia e brônquios, de origem viral, sobretudo em lactantes e crianças pequenas) e pleurises (inflamação aguda da pleura, de origem bacteriana). Logo todos se contagiam e morrem nalguns dias. João Daniel chama atenção para o efeito psicológico nefasto destas epidemias: “(...) são muito desanimados, e em apreendendo que morrem é infalível a morte”. Em terceiro lugar vêm as bexigas (varíola). Esse mal abate sobretudo índios e negros, ainda mais que aos brancos, embora ele tampouco não poupe alguns europeus. Por último vêm o sarampão (erupção cutânea aguda avermelhada provocada por vírus ou coco) seguido de grandes diarreias que extermina milhares de indivíduos.
Os ciclos de epidemias se repetem em média a cada 8 anos a partir de 1690: 1621 (varíola e sarampo), 1649/1652 (varíola), 1662 (varíola e sarampo), 1690 (varíola e sarampo), 1695 (varíola), 1724/1725 (varíola e sarampo), 1737/1740 (varíola e sarampo), 1748/1749 sarampo (“sarampo grande”) e 1790 sarampo (“sarampo grande”).
Os tempos de epidemias são crises que revelam todo o mecanismo social por dentro, sua estrutura de explorações, oportunismos e injustiças. Na Amazônia dos séculos XVII e XVIII os nativos são essenciais para a vida econômica funcionar. A sociedade colonial vive do seu sangue. São também eles os mais visados pela morte. As epidemias são seletivas, porque dizimam sobretudo os pobres. Na epidemia de 1748 milhares de indígenas fogem de Belém, Vigia, Cametá e outro centros porque a peste é essencialmente urbana. Vão para os matos do interior, longe dos brancos portugueses. O padre João Daniel revela os dois principais vetores das doenças para os índios: os militares e os comerciantes. Estes usam todas as manobras para atender “seus negócios e conveniências”, inclusive o abuso de poder para movimentar a economia e não perder dinheiro. Situação em tudo semelhante à atual epidemia de Coronavírus.
Os usos de remédios para curar e tratar estas doenças revelam a tensão entre o saber nativo (“remédios caseiros”) e o saber científico europeu (“remédios da arte médica”). João Daniel era “físico” conhecedor das artes médicas. Ele cita em seu “Tesouro” dois receituários famosos no século XVIII: O “Erário Mineral” (Lisboa, 1735) e o “Boticário do Amazonas”. Conhece também a famosa “Pharmacopea Lusitana” (Lisboa, 1704). Em suas terapias para os catarros e as outras doenças João Daniel prescreve os suadouros e as sangrias para expelir o frio do corpo e excitar o calor em acordo com as teorias europeias dominantes hipocrático-galênicas da época. Porém na composição dos remédios sabe valorizar os remédios caseiros: aguardente da cabeça, o chá da raiz de pajé merioba, o extrato de alcaçuz bravo, as castanhas de cavalo frescas, o cipó padú, erva de santa maria, andiroba, copaíba, e a lista é grande.
João Daniel zomba de um português teimoso por não acreditar nas propriedades medicinais dos remédios caseiros dos índios do Pará quando sofre com dores de catarros. O português diz preferir os poderes curativos das artes médicas europeias e despreza as indígenas por julga-las ineficazes. Após dias de sofrimento com os catarros, o português cede a teimosia e usa as castanhas de cavalo frescas borrifadas com água, obtendo a cura. “Cabeçudo”, diz o jesuíta, já teria experimentado alívio se não fosse obstinado.
João Daniel não está só como “físico”, há muitos outros jesuítas especialistas das artes médicas na missão do Maranhão: o irmão leigo Manoel de Andrade, irmão Francisco Cabral, irmão Rafael Cardoso, irmão Domingos Coelho, irmão André da Costa, irmão Clemente Ferreira, padre Manoel da Fonseca, irmão Francisco da Gaia, irmão Manoel Girão, padre Francisco Gonçalves, irmão Romão José, irmão Manuel Lopes, irmão Caetano de Oliveira, padre João Carlos Orlandini, padre António Pereira, irmão João Pereira, irmão José Pereira, irmão Manuel Pereira, padre Luís Pinheiro, irmão Manuel Rodrigues, irmão António Vieira , todos farmacêuticos e enfermeiros.
Através do tratado de João Daniel e das cartas trocadas entre os missionários do Pará com os seus superiores de Roma ou Lisboa, aprendemos como os jesuítas agem nos tempos de epidemia e como a Companhia de Jesus coordena suas atividades quando as comunicações por barco ainda são restritas e difíceis. Vemos nesses documentos que o fatalismo e a busca pela abnegação geralmente acompanhavam surtos das doenças: alguns jesuítas encontraram consolo e oportunidade de “morrer bem” (como mártires), principalmente se a doença é contraída por meio de serviços aos aflitos. Outros procuram abordar os sintomas das doenças e preservar indivíduos saudáveis de seus estragos. Esse pragmatismo, derivado das ordens de Inácio de Loyola para evitar penitências corporais excessivas e preservar o corpo para melhor servir a Deus, é interpretado por alguns como um sinal de compromisso religioso fraco. A ordem rival dos franciscanos atrai grande crédito nessa época pelas suas incursões suicidas nos Lazaretos (hospitais), onde os doentes aguardam a morte. Já a relutância dos jesuítas em pôr em risco igualmente os seus padres e irmãos enfermeiros é interpretada pelos colonos portugueses e pelos índios como covardia e amor excessivo a esse mundo.
Até que ponto os jesuítas são "modernos", ou secularizados e empíricos, na sua abordagem das doenças epidêmicas? Os documentos revelam que o compromisso religioso jesuíta não oculta o que poderíamos interpretar como uma perspectiva "científica". A teoria médica jesuíta distingue entre causas primárias e secundárias. A ação divina produz a peste como advertência ou punição da humanidade desviada pelo pecado. Os jesuítas promovem os remédios religiosos “padrão”: a conversão, a oração e a penitência. Mas as causas secundárias, incluindo fatores naturais e artificiais, como ar pestilento, a água suja e a aglomeração de pessoas afetadas pedem diferentes respostas terapêuticas, mudanças na dieta e condições físicas para a remoção daqueles vulneráveis a doenças. Os jesuítas estão cientes de que a mortalidade pode ser limitada por ação corretiva rápida, muitos jesuítas estão convencidos de que a ajuda física é tão importante como o socorro espiritual.
Nos séculos XVII e XVIII se afirma na Europa um tipo de saber científico classificado pelo nome de história natural. Este saber é um embrião das atuais ciências da vida, tal como as chamamos hoje: a biologia (e suas ramificações específicas: a zoologia e a botânica), a genética, a anatomia, as neurociências, etc. Essa história natural se encarregou de estabelecer princípios do conhecimento a serem definidos, explicados e demonstrados sobre as semelhanças e diferenças entre os seres, sua estrutura visível, suas características específicas e gerais, sua possível classificação na ordem dos seres vivos, as descontinuidades que os separavam e as transições que os uniam. A história natural foi um saber ordenador, classificador, gramatizador. Foi um saber positivo para o qual os homens ao seu serviço deviam construir princípios e causas coerentes dos fenômenos naturais, fazer descrições exatas desses fenômenos, confirmar sua existência, desenvolver teorias sobre eles. As Academias de Ciências estatais e oficiais foram o lugar institucional de produção e legitimação política e social da história natural. Roma teve a sua Academia em 1603, a Alemanha (Berlim) em 1652, na França a Academia fundou-se em 1666, a Prússia em 1700, Portugal em 1779.
O Estado promove os primeiros passos da sua biopolítica. As epidemias são o momento de aplicação dessa biopolítica. Um exemplo disso provém das medidas de isolamento, quando se declara oficialmente a peste numa cidade no século XVII, de acordo com um regulamento resumido por Michel Foucault: decreta-se o policiamento espacial estrito, o fechamento da cidade e das suas estradas, a proibição de sair sob pena de morte, divisão da cidade em quarteirões onde se estabelece o poder de um intendente. Cada rua é posta sob a autoridade de um prefeito; ele a vigia; se deixar seu posto, será punido com a morte. No dia designado, ordena-se a todos que se fechem em suas casas: é proibido sair sob pena de morte. O mesmo prefeito vem fechar por fora a porta de cada casa; leva a chave consigo, e a entrega ao intendente do quarteirão; este a conserva até o fim da quarentena. Cada família deve fazer as suas provisões, mas para o pão e o vinho são preparados entre a rua e o interior das casas pequenos canais de madeira, que permitem fazer chegar a cada um a sua ração, sem comunicação entre fornecedores e os habitantes; para a carne, o peixe e as verduras utilizam-se roldanas e cestas. Se for muito necessário sair das casas, isso se fará por turnos, e sem qualquer encontro. Só circulam os prefeitos, os intendentes, os soldados da guarda e também entre as casa infectadas, de um cadáver ao outro, os “coveiros”, que tanto faz se morrem ou não: é “gente vil, que leva os doentes, enterra os mortos, limpa e faz muitos ofícios vis e abjetos”. A inspeção funciona sem parar. “Um corpo de milícia; a comandado por oficiais e gente do bem”, guardas nas portas, na prefeitura e em todos os bairros pra tornar mais pronta a obediência do povo, e mais absoluta a autoridade dos magistrados, “assim como para vigiar todas as desordens, roubos e pilhagens”. (...) essa vigilância se apoia num sistema de registro permanente: relatórios dos síndicos aos intendentes, destes aos almotaceis e ao prefeito. No começo da “apuração” se estabelece o papel de todos os habitantes (...): se anotam “o nome, a idade, o sexo, sem exceção de condição” (...). Tudo o que é observado durante as visitas, mortes, doenças, reclamações, irregularidades, é anotado e transmitido aos intendentes e magistrados. Estes tem o controle dos cuidados médicos e um médico responsável; (...) O registro do patológico deve ser constante e centralizado. A relação de cada um com sua doença e sua morte passa pelas instâncias do poder, pelo registro que delas é feito, pelas decisões que elas tomam.
Este é um regulamento de isolamento típico da cidade de Vincennes no século XVII. Ele descreve as providências oficiais por ocasião da peste. O nosso presente já está prefigurado aí. Mas quais são as diferenças entre nós homens do século XXI e eles?
sexta-feira, 17 de abril de 2020
Quarentena: o que os historiadores têm a dizer sobre o assunto
Por Aldrin Figueiredo (UFPA)
video em:
https://www.youtube.com/channel/UCku6jMkVku-g1atjk3j-QBQ?view_as=subscriber
Quarentena. Não se fala em outra coisa. Parecia uma palavra perdida no tempo. Para os
historiadores, no entanto, especialmente aqueles que mexeram com a imprensa do
século XIX ou com temas enredados com as doenças e outras práticas de cura,
quarentena é palavra corriqueira. Já foram algumas pessoas que me perguntaram de
onde vem a palavra quarentena. Por que os tais quarenta dias?
Revirando literatura, memória médica, textos de jornais, romances, tratados antigos,
sempre a quarentena aparece como reclusão de indivíduos ou animais sadios pelo
período máximo de incubação (aparecimento dos sintomas) da doença, contado a partir
dos relatos sobre da data do último contato com um provável portador, ou da data em
que esse indivíduo sadio abandonou o local em que se encontrava a fonte de infecção e
daquele “mal”, como se dizia no passado.
Hoje sabemos que há considerável variação nos períodos de incubação de agentes
patogênicos. Um caso famoso na medicina são as tais proteínas (príon) agente causador
da doença de Creutzfeldt-Jakob ou Kuru, por exemplo, possuem um período de
incubação que chega a 30 anos, ou de 8 a 9 anos nos casos infantis. Na forma da doença
de Creutzfeldt-Jakob é de 18 meses em casos de transplante de córnea e pouco mais de
2 anos em casos de contaminação após uso de eletrodos intracerebrais. Essa história
inclusive ganhou o cinema.
Porém, vários historiadores, como Jean Starobinski e Roy Porter, ambos também
médicos, passando por Jacques Le Goff, reconhecido medievalista, mostraram que o
termo "quarentena" teve origem na prática de cidades portuárias medievais de manter
sem comunicação nos portos em que chegavam, durante quarenta dias, os navios
procedentes de determinadas áreas e sobretudo do Oriente. Não mudou muita coisa, a
não ser o número, pois hoje sabemos muito mais sobre toda essa variação do período
máximo de incubação da doença, além é claro das regras sanitárias, como por exemplo
“lavar bem as mãos”, prática crucial hoje, mas que no século XIX era até desaconselhada
pelos médicos e farmacêuticos.
Não é exagero dizer que a atitude de lavar as mãos revolucionou a medicina. No entanto,
havia médico no século XIX que recriminava os pajés pelos usos da água corrente
durante o parto ou em outros tratamentos de cura.
Mas, afinal, de onde vêm os 40 dias da quarentena. Na idade média, profundamente
marcada pela simbologia religiosa do cristianismo, do judaísmo e do islamismo, além do
repertório das crenças populares, o número quarenta tinha um significado profundo de
recolhimento, refúgio, resguardo. Não custa lembrar que as narrativas existiam para
confirmar tanto o mito quanto a história. O dilúvio durou 40 dias e 40 noites. Aos 40
anos, Moisés feriu um homem egípcio e teve de fugir. 40 anos mais tarde foi conduzido
a ir libertar seu povo da escravidão. Recolheu-se no monte Sinai por 40 dias e 40 noites.
Peregrinou com o povo hebreu pelo deserto por 40 anos. Elias, o profeta, esteve por 40
dias na montanha. O próprio Jesus, antes de iniciar seu ministério, jejuou por 40 dias e
40 noites, dando origem ao se convencionou como “quaresma” (quadragesima dies)
período do ano litúrgico que antecede a Páscoa cristã. Inclusive, o corona vírus nos veio
exatamente na quaresma. Mais água na fervura ou brasa na fogueira. Após sua
ressurreição, Cristo ficou 40 dias com seus discípulos. E, no Islã, Maomé, ou Muhammad,
aos 40 anos fez um retiro espiritual em que recebeu sua incumbência divina. Nem
sempre os 40 dias citados eram 40 dias realmente. Eram, no entanto, uma quarentena.
Certamente tanto o número quarenta como o termo quarentena, referidos há séculos,
continuam como expectativa de preservação da saúde da humanidade, de noções de
cura e de bem-estar, de viver entre a solidão, a solitude e o convívio social.
Temos que ouvir os médicos, inclusive também os historiadores da medicina. Aprender
no diálogo com o passado. Dá vontade de arrolar aqui algumas das milhares de
referências da quarentena na Amazônia que já topei pelos arquivos. Qualquer
regulamento portuário do século XIX aparece a quarentena em letras de destaque e
qualquer pajé ou parteira do século XIX mandava recolher a mulher que acabou de parir
num resguardo de quarenta dias, e que comesse apenas galinha com “pirão de parida”,
e tivesse cuidado com os ventos, pesos e “ramos de ar”.
Em 2016, o historiador Alinson Bashford, publicou o belo livro Quarantine: local and
global histories. Basingstoke, Hampshire: Palgrave Macmillan, 2016, reunindo vários
historiadores que trataram do tema em profundidade. O próprio organizador do livro
publicou sobre Quarentena marítima: ligando o mundo antigo e as novas histórias
mundiais, ou Jane Crawshaw que discutiu os lugares e espaços da quarentena moderna.
Alexander Chaser-Levenson, olhando para o problema atual dos refugiados na Europa,
discutiu sobre quarentena mediterrânea do início do século XIX como “sistema
europeu”, e Saurabh Mishra sobre quarenta e seus aspectos policiais em
Encarceramento e resistência em um lazaretto do Mar Vermelho, 1880-1930. O nosso
conhecido Robert Peckham, escreveu sobre os Espaços de quarentena em Hong Kong
ao tempo dos Ingleses e Hans Pols, com o apoio das imagens da história da arte e da
paisagem analisou a Quarentena nas Índias Holandesas. Por fim, Nayan Shah, Barbara
Brooks, Ryan McLane, Kavita Sivaramakrishnan, Anne Clarke, Ursula K. Frederick, Peter
Frederich, Peter Hobbins, Ingrid Sykes e Gareth Hoskins dedicaram importantes
pesquisas sobre a quarentena em contextos insulares, como nas ilhas Angel, na
California; a quarentena para doenças venéreas na Nova Zelândia, ou algo muito
próximo de hoje com a gripe e quarentena em Samoa. Também a quarentena da febre
amarela na Índia ou as paisagens solitárias da quarentena de Sydney na Austrália, ou
ainda sobre os sentidos da quarentena em Sana Ducos: o último e célebre leprosário na
Nova Caledônia. Há ainda o belo texto de Susan Burnes, sobre os testemunhos de vida
após a quarentena no Museu Nacional da Hanseníase no Japão.
Antes disso, tenho que lembrar o papel da Unicamp, especialmente minha memória é
da década de 1990 e princípio dos anos 2000, época que eu andei por lá, num formidável
grupo de historiadores, sob a batuta de Sidney Chalhoub, que publicou uma série de
estudos sobre o tema. Além do Cidade Febril, do Chalhoub, marcou também o livro Artes
e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social da medicina (2003), no qual
participo com um trabalho sobre medicina e pajelança. Muitos desses historiadores
estão nesse livro e outros com suas teses de altíssima qualidade. Invoco esse passado,
porque os historiadores, mas não só eles, estão sendo perseguidos por este governo,
por não fazermos pesquisa de interesse fundamental aos olhos de quem comanda o
país. Por isso mesmo estou aqui pra dizer que muito do que se sabe, em seus mais
profundos aspectos comparativos, se deve a grupos como este formado principalmente
em universidades públicas. Nomeio os da minha época: Carlos Galvão, Vera Beltrão (in
memoria, que saudade!), Gabriela Sampaio, Maria Leonia Resende, Regina Xavier,
Marta Almeida, Luiz Otavio Ferreira, Magali Engel, Tânia Pimenta, Jane Beltrão,
Ariosvaldo Diniz, Beatriz Weber, Liane Bertuci, Ana Paula Vosne. Pode escolher, pois aí
é coisa primeira lavra e qualidade.
E como eu estou em Belém, recomendo vivamente a leitura do livro do meu colega José
Maria Abreu Junior, que é historiador e médico patologista, e que fez um belo doutorado
em história na UFPA, o livro O vírus e a cidade: rastros da gripe espanhola no cotidiano
da cidade de Belém (1918), pesquisa de maior fôlego que conheço sobre algo em muitos
aspectos análogo ao que estamos vivendo atualmente, só que com um imensurável
número maior de mortos. O tema não me é estranho pois andei estudando médicos e
pajés no passado, e aqui e ali a quarentena aparecia como prática sanitária, profilática
ou de temor aos céus.
Lá como cá, no passado e no presente, a quarentena sempre foi para ser seguida. Talvez
a novidade seja apenas um jogo de escala, termo bem conhecido dos historiadores. E,
claro, a voracidade da informação. Se os historiadores estão por aí pra mostrar as outras
pestes, a lembrança de outros mortos, estão também a trazer ao presente o incrível
universo de luta pela vida e a esperança de cura em outros tempos e diversas partes do
mundo.
Leiam os historiadores, ouçam os médicos e profissionais de saúde e cumpram esse
resguardo social necessário. Ignorem presidentes abestalhados, pastores espertalhões,
curiosos e charlatães. Fiquem em casa, protejam-se e protejam suas famílias. 15, 20 ou
40 dias, qual for a quarenta, cumpram. Clio e Asclépio, saídos do mito, hão também de
zelar por nós, mas lavem as mãos, muito bem, com água e sabão, diversas vezes por dia.
video em:
https://www.youtube.com/channel/UCku6jMkVku-g1atjk3j-QBQ?view_as=subscriber
Quarentena. Não se fala em outra coisa. Parecia uma palavra perdida no tempo. Para os
historiadores, no entanto, especialmente aqueles que mexeram com a imprensa do
século XIX ou com temas enredados com as doenças e outras práticas de cura,
quarentena é palavra corriqueira. Já foram algumas pessoas que me perguntaram de
onde vem a palavra quarentena. Por que os tais quarenta dias?
Revirando literatura, memória médica, textos de jornais, romances, tratados antigos,
sempre a quarentena aparece como reclusão de indivíduos ou animais sadios pelo
período máximo de incubação (aparecimento dos sintomas) da doença, contado a partir
dos relatos sobre da data do último contato com um provável portador, ou da data em
que esse indivíduo sadio abandonou o local em que se encontrava a fonte de infecção e
daquele “mal”, como se dizia no passado.
Hoje sabemos que há considerável variação nos períodos de incubação de agentes
patogênicos. Um caso famoso na medicina são as tais proteínas (príon) agente causador
da doença de Creutzfeldt-Jakob ou Kuru, por exemplo, possuem um período de
incubação que chega a 30 anos, ou de 8 a 9 anos nos casos infantis. Na forma da doença
de Creutzfeldt-Jakob é de 18 meses em casos de transplante de córnea e pouco mais de
2 anos em casos de contaminação após uso de eletrodos intracerebrais. Essa história
inclusive ganhou o cinema.
Porém, vários historiadores, como Jean Starobinski e Roy Porter, ambos também
médicos, passando por Jacques Le Goff, reconhecido medievalista, mostraram que o
termo "quarentena" teve origem na prática de cidades portuárias medievais de manter
sem comunicação nos portos em que chegavam, durante quarenta dias, os navios
procedentes de determinadas áreas e sobretudo do Oriente. Não mudou muita coisa, a
não ser o número, pois hoje sabemos muito mais sobre toda essa variação do período
máximo de incubação da doença, além é claro das regras sanitárias, como por exemplo
“lavar bem as mãos”, prática crucial hoje, mas que no século XIX era até desaconselhada
pelos médicos e farmacêuticos.
Não é exagero dizer que a atitude de lavar as mãos revolucionou a medicina. No entanto,
havia médico no século XIX que recriminava os pajés pelos usos da água corrente
durante o parto ou em outros tratamentos de cura.
Mas, afinal, de onde vêm os 40 dias da quarentena. Na idade média, profundamente
marcada pela simbologia religiosa do cristianismo, do judaísmo e do islamismo, além do
repertório das crenças populares, o número quarenta tinha um significado profundo de
recolhimento, refúgio, resguardo. Não custa lembrar que as narrativas existiam para
confirmar tanto o mito quanto a história. O dilúvio durou 40 dias e 40 noites. Aos 40
anos, Moisés feriu um homem egípcio e teve de fugir. 40 anos mais tarde foi conduzido
a ir libertar seu povo da escravidão. Recolheu-se no monte Sinai por 40 dias e 40 noites.
Peregrinou com o povo hebreu pelo deserto por 40 anos. Elias, o profeta, esteve por 40
dias na montanha. O próprio Jesus, antes de iniciar seu ministério, jejuou por 40 dias e
40 noites, dando origem ao se convencionou como “quaresma” (quadragesima dies)
período do ano litúrgico que antecede a Páscoa cristã. Inclusive, o corona vírus nos veio
exatamente na quaresma. Mais água na fervura ou brasa na fogueira. Após sua
ressurreição, Cristo ficou 40 dias com seus discípulos. E, no Islã, Maomé, ou Muhammad,
aos 40 anos fez um retiro espiritual em que recebeu sua incumbência divina. Nem
sempre os 40 dias citados eram 40 dias realmente. Eram, no entanto, uma quarentena.
Certamente tanto o número quarenta como o termo quarentena, referidos há séculos,
continuam como expectativa de preservação da saúde da humanidade, de noções de
cura e de bem-estar, de viver entre a solidão, a solitude e o convívio social.
Temos que ouvir os médicos, inclusive também os historiadores da medicina. Aprender
no diálogo com o passado. Dá vontade de arrolar aqui algumas das milhares de
referências da quarentena na Amazônia que já topei pelos arquivos. Qualquer
regulamento portuário do século XIX aparece a quarentena em letras de destaque e
qualquer pajé ou parteira do século XIX mandava recolher a mulher que acabou de parir
num resguardo de quarenta dias, e que comesse apenas galinha com “pirão de parida”,
e tivesse cuidado com os ventos, pesos e “ramos de ar”.
Em 2016, o historiador Alinson Bashford, publicou o belo livro Quarantine: local and
global histories. Basingstoke, Hampshire: Palgrave Macmillan, 2016, reunindo vários
historiadores que trataram do tema em profundidade. O próprio organizador do livro
publicou sobre Quarentena marítima: ligando o mundo antigo e as novas histórias
mundiais, ou Jane Crawshaw que discutiu os lugares e espaços da quarentena moderna.
Alexander Chaser-Levenson, olhando para o problema atual dos refugiados na Europa,
discutiu sobre quarentena mediterrânea do início do século XIX como “sistema
europeu”, e Saurabh Mishra sobre quarenta e seus aspectos policiais em
Encarceramento e resistência em um lazaretto do Mar Vermelho, 1880-1930. O nosso
conhecido Robert Peckham, escreveu sobre os Espaços de quarentena em Hong Kong
ao tempo dos Ingleses e Hans Pols, com o apoio das imagens da história da arte e da
paisagem analisou a Quarentena nas Índias Holandesas. Por fim, Nayan Shah, Barbara
Brooks, Ryan McLane, Kavita Sivaramakrishnan, Anne Clarke, Ursula K. Frederick, Peter
Frederich, Peter Hobbins, Ingrid Sykes e Gareth Hoskins dedicaram importantes
pesquisas sobre a quarentena em contextos insulares, como nas ilhas Angel, na
California; a quarentena para doenças venéreas na Nova Zelândia, ou algo muito
próximo de hoje com a gripe e quarentena em Samoa. Também a quarentena da febre
amarela na Índia ou as paisagens solitárias da quarentena de Sydney na Austrália, ou
ainda sobre os sentidos da quarentena em Sana Ducos: o último e célebre leprosário na
Nova Caledônia. Há ainda o belo texto de Susan Burnes, sobre os testemunhos de vida
após a quarentena no Museu Nacional da Hanseníase no Japão.
Antes disso, tenho que lembrar o papel da Unicamp, especialmente minha memória é
da década de 1990 e princípio dos anos 2000, época que eu andei por lá, num formidável
grupo de historiadores, sob a batuta de Sidney Chalhoub, que publicou uma série de
estudos sobre o tema. Além do Cidade Febril, do Chalhoub, marcou também o livro Artes
e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social da medicina (2003), no qual
participo com um trabalho sobre medicina e pajelança. Muitos desses historiadores
estão nesse livro e outros com suas teses de altíssima qualidade. Invoco esse passado,
porque os historiadores, mas não só eles, estão sendo perseguidos por este governo,
por não fazermos pesquisa de interesse fundamental aos olhos de quem comanda o
país. Por isso mesmo estou aqui pra dizer que muito do que se sabe, em seus mais
profundos aspectos comparativos, se deve a grupos como este formado principalmente
em universidades públicas. Nomeio os da minha época: Carlos Galvão, Vera Beltrão (in
memoria, que saudade!), Gabriela Sampaio, Maria Leonia Resende, Regina Xavier,
Marta Almeida, Luiz Otavio Ferreira, Magali Engel, Tânia Pimenta, Jane Beltrão,
Ariosvaldo Diniz, Beatriz Weber, Liane Bertuci, Ana Paula Vosne. Pode escolher, pois aí
é coisa primeira lavra e qualidade.
E como eu estou em Belém, recomendo vivamente a leitura do livro do meu colega José
Maria Abreu Junior, que é historiador e médico patologista, e que fez um belo doutorado
em história na UFPA, o livro O vírus e a cidade: rastros da gripe espanhola no cotidiano
da cidade de Belém (1918), pesquisa de maior fôlego que conheço sobre algo em muitos
aspectos análogo ao que estamos vivendo atualmente, só que com um imensurável
número maior de mortos. O tema não me é estranho pois andei estudando médicos e
pajés no passado, e aqui e ali a quarentena aparecia como prática sanitária, profilática
ou de temor aos céus.
Lá como cá, no passado e no presente, a quarentena sempre foi para ser seguida. Talvez
a novidade seja apenas um jogo de escala, termo bem conhecido dos historiadores. E,
claro, a voracidade da informação. Se os historiadores estão por aí pra mostrar as outras
pestes, a lembrança de outros mortos, estão também a trazer ao presente o incrível
universo de luta pela vida e a esperança de cura em outros tempos e diversas partes do
mundo.
Leiam os historiadores, ouçam os médicos e profissionais de saúde e cumpram esse
resguardo social necessário. Ignorem presidentes abestalhados, pastores espertalhões,
curiosos e charlatães. Fiquem em casa, protejam-se e protejam suas famílias. 15, 20 ou
40 dias, qual for a quarenta, cumpram. Clio e Asclépio, saídos do mito, hão também de
zelar por nós, mas lavem as mãos, muito bem, com água e sabão, diversas vezes por dia.
quarta-feira, 15 de abril de 2020
Em 1885 a imprensa apresentava uma Belém "doente"
Selecionado por Diego da Silva (PPHIST/UFPA)
Publicado no dia 10 de outubro de 1885 no Jornal Diario do Gram-Pará
CHRONICA DIARIA
Saude Publica
"O obituário de hontem registrou 20 casos de diversas moléstias. Não há exemplo, excepto em epochas de epidemias, de tanto casos fataes em so dia, o que denota um péssimo estado climatérico. Temo por vezes reclamado providencias urgentes para melhorar o estado sanitário da cidade, que vae de mal a peior, e de novo pedimos a atenção do sr. Conselheiro Ariripe para esse importante assumpto. E preciso sanear a cidade, pelo menos esgotar os pântanos que a cercam, para isso está o governo autorizado por lei provincial. Não deve esperar que a capital se torne uma verdadeira gemonia [escada onde se expõe os corpos dos mortos] para então providencias para acautelar a saúde da população. Além de diversas molestias, o beribéri desenvolve-se em proporções assustadoras, e nada se tem feito para estudar as causas d’mal e dar-lhe combate. Seria de bom conselho restabelecer as providencias empregadas por occasião da epidemia da varíola – crearem-se commissões encarregadas de visitas sanitárias nos domicílios, de accordo com a câmara municipal, pois com isso conseguir-se-biam condições de hygiene de muito proveito. A população soffre, como se verifica pelo obituário, e bem merece que o governo empregue todos os meios para proteger a saúde publica, custe isso, embora, muito trabalho e despeza. O sr. Conselheiro Araripe prestará um relevante serviço occupando-se da saúde publica, um dos mais importantes ramos da administração e um dos mais desprezados entre nos."
Nota: A ideia da contaminação por microrganismos é datada somente do final do século XIX, com Robert Koch. Até então se creditava como causa das epidemias o "ar" contaminado, os famosos miasmas: daí a preocupação com as águas paradas. Por outro lado, o discurso médico foi instrumento de marginalização de parte da população mais pobre, como nos lembra o historiador Sidney Chaloub em seu livro "Cidade Febril".
Publicado no dia 10 de outubro de 1885 no Jornal Diario do Gram-Pará
CHRONICA DIARIA
Saude Publica
"O obituário de hontem registrou 20 casos de diversas moléstias. Não há exemplo, excepto em epochas de epidemias, de tanto casos fataes em so dia, o que denota um péssimo estado climatérico. Temo por vezes reclamado providencias urgentes para melhorar o estado sanitário da cidade, que vae de mal a peior, e de novo pedimos a atenção do sr. Conselheiro Ariripe para esse importante assumpto. E preciso sanear a cidade, pelo menos esgotar os pântanos que a cercam, para isso está o governo autorizado por lei provincial. Não deve esperar que a capital se torne uma verdadeira gemonia [escada onde se expõe os corpos dos mortos] para então providencias para acautelar a saúde da população. Além de diversas molestias, o beribéri desenvolve-se em proporções assustadoras, e nada se tem feito para estudar as causas d’mal e dar-lhe combate. Seria de bom conselho restabelecer as providencias empregadas por occasião da epidemia da varíola – crearem-se commissões encarregadas de visitas sanitárias nos domicílios, de accordo com a câmara municipal, pois com isso conseguir-se-biam condições de hygiene de muito proveito. A população soffre, como se verifica pelo obituário, e bem merece que o governo empregue todos os meios para proteger a saúde publica, custe isso, embora, muito trabalho e despeza. O sr. Conselheiro Araripe prestará um relevante serviço occupando-se da saúde publica, um dos mais importantes ramos da administração e um dos mais desprezados entre nos."
Nota: A ideia da contaminação por microrganismos é datada somente do final do século XIX, com Robert Koch. Até então se creditava como causa das epidemias o "ar" contaminado, os famosos miasmas: daí a preocupação com as águas paradas. Por outro lado, o discurso médico foi instrumento de marginalização de parte da população mais pobre, como nos lembra o historiador Sidney Chaloub em seu livro "Cidade Febril".
domingo, 12 de abril de 2020
Mortes, sepultamentos e desigualdades em tempos de epidemias
Por Roberta Sauaia Martins (SEDUC-PA/ PPHIST-UFPA)
Recentemente, imagens de corpos abandonados pelas avenidas de Guayaquil no Equador circularam nas redes sociais e são uns dos resultados da atual pandemia de Covid-19. Os cidadãos equatorianos, em pedidos de auxílio para enterrarem de forma digna seus mortos, denunciam que o sistema funerário entrou em colapso e os cemitérios não possuem capacidade para tamanha demanda.
No passado, entre 1776 a 1778, a cidade de Belém foi palco de outra epidemia; de bexiga (termo atribuído de forma genérica à varíola). Num cenário marcado pela grande quantidade de mortes já não “havia nas Igrejas sepulturas que não estivessem cheias”, relatou com grande preocupação o então bispo do Pará. Aliás, não era a primeira vez que o problema em relação aos cadáveres insepultos se fazia sentir na cidade, pois em um outro momento epidêmico (“Grande sarampo”- 1748-1750) corpos de escravos poderiam ser avistados nas frentes de igrejas, lançados “às feras nos matos”, outros jogados ao mar, ou mesmo “expostos à misericórdia dos vivos”. Dentro da lógica cristã, de um modo geral, o enterro no abrigo das igrejas, por exemplo, era visto como uma das estratégias de salvação da alma, pois, nesses espaços se estaria mais próximo a Deus, não rompendo totalmente com o mundo dos vivos. Importante lembrarmos que na cidade de Belém, somente a partir de 1850 os sepultamentos passaram a ocorrer regularmente nos cemitérios civis.
Pior do que não poder ser enterrado dentro das igrejas era não ter onde ser enterrado. Em 1777, durante as “bexigas”, um cemitério foi construído aos arredores da cidade. A ordem veio dos vereadores de Belém, e o espaço foi feito de maneira rudimentar e às pressas, sequer contava com um muro que o cercasse. Indígenas e escravos, as principais vítimas das bexigas, poderiam ter seus corpos expostos a céu aberto e alvos do apetite de animais. Parece que o “bom morrer” não era, assim, reservado a todos de forma igualitária na Belém de outrora. Mas, será que essa é uma realidade circunscrita somente ao passado?
A história nos indica que passado e presente se conectam a partir de inúmeras tramas, rupturas, mas também de permanências. Processos que se repetem, como as diferentes epidemias, ainda que em tempos e sociedades tão distintas e demandam ações: como o cuidado com os mortos. E mais do que isso, em momentos críticos, tornam-se ainda mais visíveis e aprofundam-se as desigualdades e mazelas sociais já existentes.
Em Nova York mandou-se cavar covas coletivas para dar conta das mortes que têm crescido em ritmo acelerado por conta do Covid-19. Como não citar ainda Bérgamo, na Itália, onde os cemitérios, igrejas e crematórios já não suportam o alto número diário de vítimas da atual pandemia.
Em Belém de hoje, em um pronunciamento realizado via redes sociais pelo atual prefeito, no dia 9 de abril, foi noticiada a proposta de se construir um cemitério especificamente para enterrar os mortos pelo novo coronavírus: A ideia é realizar tal projeto no bairro do Tapanã, na periferia da cidade, no qual já existe um cemitério em condições precárias, sem manutenção regular e até mesmo com sepulturas expostas. A comunidade do bairro, a qual denuncia também problemas de saneamento básico, teme pelo possível futuro caótico: alastrar da enfermidade e piorar ainda mais a delicada situação vivenciada pelos moradores do entorno do cemitério. Quem seriam os mortos enterrados nesse possível novo cemitério? Quais pessoas seriam as mais afetadas por esse projeto? São respostas que ainda não temos. Contudo, o presente e o passado já nos dão pistas importantes de como os impactos das epidemias podem ser sentidos de forma desigual.
Ontem e hoje o direito a um sepultamento minimamente digno é negado a homens e mulheres, sejam indígenas, escravos, mestiços, desabrigados, gente pobre, a arraia miúda, entre outros. Seus nomes, suas dores, histórias de vida, seus sonhos e desafios são silenciados. As epidemias não apenas acabaram com suas vidas, como escancararam os locais marginalizados e desiguais reservados a eles nas sociedades.
Recentemente, imagens de corpos abandonados pelas avenidas de Guayaquil no Equador circularam nas redes sociais e são uns dos resultados da atual pandemia de Covid-19. Os cidadãos equatorianos, em pedidos de auxílio para enterrarem de forma digna seus mortos, denunciam que o sistema funerário entrou em colapso e os cemitérios não possuem capacidade para tamanha demanda.
No passado, entre 1776 a 1778, a cidade de Belém foi palco de outra epidemia; de bexiga (termo atribuído de forma genérica à varíola). Num cenário marcado pela grande quantidade de mortes já não “havia nas Igrejas sepulturas que não estivessem cheias”, relatou com grande preocupação o então bispo do Pará. Aliás, não era a primeira vez que o problema em relação aos cadáveres insepultos se fazia sentir na cidade, pois em um outro momento epidêmico (“Grande sarampo”- 1748-1750) corpos de escravos poderiam ser avistados nas frentes de igrejas, lançados “às feras nos matos”, outros jogados ao mar, ou mesmo “expostos à misericórdia dos vivos”. Dentro da lógica cristã, de um modo geral, o enterro no abrigo das igrejas, por exemplo, era visto como uma das estratégias de salvação da alma, pois, nesses espaços se estaria mais próximo a Deus, não rompendo totalmente com o mundo dos vivos. Importante lembrarmos que na cidade de Belém, somente a partir de 1850 os sepultamentos passaram a ocorrer regularmente nos cemitérios civis.
Pior do que não poder ser enterrado dentro das igrejas era não ter onde ser enterrado. Em 1777, durante as “bexigas”, um cemitério foi construído aos arredores da cidade. A ordem veio dos vereadores de Belém, e o espaço foi feito de maneira rudimentar e às pressas, sequer contava com um muro que o cercasse. Indígenas e escravos, as principais vítimas das bexigas, poderiam ter seus corpos expostos a céu aberto e alvos do apetite de animais. Parece que o “bom morrer” não era, assim, reservado a todos de forma igualitária na Belém de outrora. Mas, será que essa é uma realidade circunscrita somente ao passado?
A história nos indica que passado e presente se conectam a partir de inúmeras tramas, rupturas, mas também de permanências. Processos que se repetem, como as diferentes epidemias, ainda que em tempos e sociedades tão distintas e demandam ações: como o cuidado com os mortos. E mais do que isso, em momentos críticos, tornam-se ainda mais visíveis e aprofundam-se as desigualdades e mazelas sociais já existentes.
Em Nova York mandou-se cavar covas coletivas para dar conta das mortes que têm crescido em ritmo acelerado por conta do Covid-19. Como não citar ainda Bérgamo, na Itália, onde os cemitérios, igrejas e crematórios já não suportam o alto número diário de vítimas da atual pandemia.
Em Belém de hoje, em um pronunciamento realizado via redes sociais pelo atual prefeito, no dia 9 de abril, foi noticiada a proposta de se construir um cemitério especificamente para enterrar os mortos pelo novo coronavírus: A ideia é realizar tal projeto no bairro do Tapanã, na periferia da cidade, no qual já existe um cemitério em condições precárias, sem manutenção regular e até mesmo com sepulturas expostas. A comunidade do bairro, a qual denuncia também problemas de saneamento básico, teme pelo possível futuro caótico: alastrar da enfermidade e piorar ainda mais a delicada situação vivenciada pelos moradores do entorno do cemitério. Quem seriam os mortos enterrados nesse possível novo cemitério? Quais pessoas seriam as mais afetadas por esse projeto? São respostas que ainda não temos. Contudo, o presente e o passado já nos dão pistas importantes de como os impactos das epidemias podem ser sentidos de forma desigual.
Ontem e hoje o direito a um sepultamento minimamente digno é negado a homens e mulheres, sejam indígenas, escravos, mestiços, desabrigados, gente pobre, a arraia miúda, entre outros. Seus nomes, suas dores, histórias de vida, seus sonhos e desafios são silenciados. As epidemias não apenas acabaram com suas vidas, como escancararam os locais marginalizados e desiguais reservados a eles nas sociedades.
sexta-feira, 10 de abril de 2020
Que Deus nos Proteja!!!
Por: Antonio Otaviano Vieira Junior (UFPA)
Ao longo dos séculos as epidemias foram tratadas por muitos religiosos como um castigo dos céus. Ainda hoje podemos encontrar discursos de bispos neopentecostais que associam a doença e o medo causado por ela como “tática de Satanás”, ou até mesmo ouvir o ministro da saúde mandar as pessoas lerem mais a Bíblia e assistirem menos noticiários. O presidente também fez jejum e pediu que a nação se integrasse nesse gesto de contrição.
Belém do Grão-Pará durante a epidemia de 1748-1750 assistiu o emergir de lamentações e flagelos públicos. O então bispo Miguel de Bulhões descreveu um cenário de “miséria, fome e pobreza, que depois da epidemia tem padecido esta terra...”. Os vereadores da cidade também correram no mesmo sentido, adjetivando o estado da cidade como “lamentável”. Em tempos da epidemia, a imagem da cidade era marcada pelo esforço de redenção de supostos pecados. Belém assistiu um número maior de novenas, missas, procissões, autoflagelos e emocionantes sermões. Rotina de penitências, incluindo jejuns, nas quais as ordens religiosas pareciam disputar quem teria maior capacidade de clamor e sacrifício para abrandar a fúria da epidemia. As imagens sagradas invadiram as ruas. Por exemplo, no dia 06 de outubro de 1748, Nossa Senhora de Belém, padroeira da cidade, andou sobre os ombros dos Cônegos da Sé. Ainda no mesmo dia, a imagem de Santa Ana foi carregada pelos beneficiados, Santo Antônio transportado pelos meninos do coro, São Sebastião por outros sacerdotes, e Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora dos Passos e São Francisco desfilaram com os membros da Ordem Terceira – estes últimos também se impuseram autoflagelo.
270 anos depois a mesma cidade, agora se confrontando com a Covid-19, é sobrevoada por um helicóptero conduzindo a imagem de Nossa Senhora de Nazaré para abençoar Belém diante da presença ameaçadora do novo coronavírus. Sobrevoo que recebeu o seguinte pedido de uma fiel: “Mãe passa na frente e dissipa essa mal que nos assola”.
Apesar da distância temporal podemos encontrar aproximações na forma com as pessoas se apegavam à fé para superar as dores e as incertezas causadas por ambas as doenças. Nos dias atuais a igreja católica ganha concorrentes neopentecostais que reivindicam também o direito de controle e compreensão da epidemia, mesmo que isso signifique minimizar seus impactos. Por exemplo, os governadores dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo assistem nos tribunais uma disputa sobre a proibição de missas e cultos evangélicos durante o período de quarentena. Algumas igrejas, como a Universal Reino de Deus e Assembleia de Deus Vitoria em Cristo, desafiam as orientações da OMS e continuam abertas e incentivando aglomerações de seus fiéis numa vigília para o fim da Covid-19. E um dos seus bispos, Silas Malafaia, minimizou a gravidade da doença e disse que o povo brasileiro seria protegido pelo próprio DNA – seriamos um povo escolhido por Deus?
Nessa sexta-feira Santa, diante de tantas incertezas e formas de simplificar as possíveis causas e curas para atual pandemia que vivemos, peço a Deus que proteja nossos médicos e enfermeiros, nossos cientistas, nossos gerenciadores de crise e que acima de tudo nos ajude a não cair na tentação dos discursos de falsos profetas e de populistas. Que Deus nos proteja da tentação de irmos à padaria.
Ao longo dos séculos as epidemias foram tratadas por muitos religiosos como um castigo dos céus. Ainda hoje podemos encontrar discursos de bispos neopentecostais que associam a doença e o medo causado por ela como “tática de Satanás”, ou até mesmo ouvir o ministro da saúde mandar as pessoas lerem mais a Bíblia e assistirem menos noticiários. O presidente também fez jejum e pediu que a nação se integrasse nesse gesto de contrição.
Belém do Grão-Pará durante a epidemia de 1748-1750 assistiu o emergir de lamentações e flagelos públicos. O então bispo Miguel de Bulhões descreveu um cenário de “miséria, fome e pobreza, que depois da epidemia tem padecido esta terra...”. Os vereadores da cidade também correram no mesmo sentido, adjetivando o estado da cidade como “lamentável”. Em tempos da epidemia, a imagem da cidade era marcada pelo esforço de redenção de supostos pecados. Belém assistiu um número maior de novenas, missas, procissões, autoflagelos e emocionantes sermões. Rotina de penitências, incluindo jejuns, nas quais as ordens religiosas pareciam disputar quem teria maior capacidade de clamor e sacrifício para abrandar a fúria da epidemia. As imagens sagradas invadiram as ruas. Por exemplo, no dia 06 de outubro de 1748, Nossa Senhora de Belém, padroeira da cidade, andou sobre os ombros dos Cônegos da Sé. Ainda no mesmo dia, a imagem de Santa Ana foi carregada pelos beneficiados, Santo Antônio transportado pelos meninos do coro, São Sebastião por outros sacerdotes, e Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora dos Passos e São Francisco desfilaram com os membros da Ordem Terceira – estes últimos também se impuseram autoflagelo.
270 anos depois a mesma cidade, agora se confrontando com a Covid-19, é sobrevoada por um helicóptero conduzindo a imagem de Nossa Senhora de Nazaré para abençoar Belém diante da presença ameaçadora do novo coronavírus. Sobrevoo que recebeu o seguinte pedido de uma fiel: “Mãe passa na frente e dissipa essa mal que nos assola”.
Apesar da distância temporal podemos encontrar aproximações na forma com as pessoas se apegavam à fé para superar as dores e as incertezas causadas por ambas as doenças. Nos dias atuais a igreja católica ganha concorrentes neopentecostais que reivindicam também o direito de controle e compreensão da epidemia, mesmo que isso signifique minimizar seus impactos. Por exemplo, os governadores dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo assistem nos tribunais uma disputa sobre a proibição de missas e cultos evangélicos durante o período de quarentena. Algumas igrejas, como a Universal Reino de Deus e Assembleia de Deus Vitoria em Cristo, desafiam as orientações da OMS e continuam abertas e incentivando aglomerações de seus fiéis numa vigília para o fim da Covid-19. E um dos seus bispos, Silas Malafaia, minimizou a gravidade da doença e disse que o povo brasileiro seria protegido pelo próprio DNA – seriamos um povo escolhido por Deus?
Nessa sexta-feira Santa, diante de tantas incertezas e formas de simplificar as possíveis causas e curas para atual pandemia que vivemos, peço a Deus que proteja nossos médicos e enfermeiros, nossos cientistas, nossos gerenciadores de crise e que acima de tudo nos ajude a não cair na tentação dos discursos de falsos profetas e de populistas. Que Deus nos proteja da tentação de irmos à padaria.
quinta-feira, 9 de abril de 2020
Como o futuro lembrará da Covid-19
Por Antonio Otaviano Vieira Junior (UFPA)
Hoje pode nos causar estranhamento as explicações e os combates de epidemias em tempos passados.
Em 1683, Romão Mosia associou a causa da varíola e do sarampo ao “sangue menstruo, de q no ventre de nossas mays nos sustentamos, que como he alimento tão perverso [...] q do sangue menstruo mais delgado se faz o Sarampo, & do mais crasso as Bexigas...”. Ainda segundo Romão Mosia, a passagem de um cometa em 1664 foi a causa da intensificação das possibilidades de aparecimento das bexigas e do sarampo, pois estas doenças supostamente viriam do aquecimento do sangue: “do nosso Brasil seja naturalmente quente & húmido, mais capaz para estes fervores, junto com o incêndio do Cometa, faz mais estes efeitos nesta America com estes fervores”.
A febre amarela que provavelmente chegou na América lusitana no século XVII, passou a ser conhecida em Pernambuco apenas como “males” e na Bahia como “bichas”, deixando um rastro de morte. Em Recife, foi alvo de uma série de medidas preventivas: fogueiras acesas com ervas aromáticas por um mês, tiros de canhões pelo menos três vezes ao dia, expulsão das meretrizes do centro da cidade, purificação das casas, nos domicílios dos mortos jogava-se cal no chão e queimavam-se defumadores, os doentes foram enviados para longe da cidade e suas roupas e colchões lavados por três vezes ou queimados, sepultamentos foram feitos em covas mais fundas e em locais afastados do aglomerado urbano.
Por um exercício de imaginação pergunto: como no ano de 2120 serão lembradas nossas explicações para a epidemia da Covid-19 (com direito a imagem do momento preciso de contaminação da célula pelo virús) e a indicação do uso da cloroquina?
Hoje pode nos causar estranhamento as explicações e os combates de epidemias em tempos passados.
Em 1683, Romão Mosia associou a causa da varíola e do sarampo ao “sangue menstruo, de q no ventre de nossas mays nos sustentamos, que como he alimento tão perverso [...] q do sangue menstruo mais delgado se faz o Sarampo, & do mais crasso as Bexigas...”. Ainda segundo Romão Mosia, a passagem de um cometa em 1664 foi a causa da intensificação das possibilidades de aparecimento das bexigas e do sarampo, pois estas doenças supostamente viriam do aquecimento do sangue: “do nosso Brasil seja naturalmente quente & húmido, mais capaz para estes fervores, junto com o incêndio do Cometa, faz mais estes efeitos nesta America com estes fervores”.
A febre amarela que provavelmente chegou na América lusitana no século XVII, passou a ser conhecida em Pernambuco apenas como “males” e na Bahia como “bichas”, deixando um rastro de morte. Em Recife, foi alvo de uma série de medidas preventivas: fogueiras acesas com ervas aromáticas por um mês, tiros de canhões pelo menos três vezes ao dia, expulsão das meretrizes do centro da cidade, purificação das casas, nos domicílios dos mortos jogava-se cal no chão e queimavam-se defumadores, os doentes foram enviados para longe da cidade e suas roupas e colchões lavados por três vezes ou queimados, sepultamentos foram feitos em covas mais fundas e em locais afastados do aglomerado urbano.
Por um exercício de imaginação pergunto: como no ano de 2120 serão lembradas nossas explicações para a epidemia da Covid-19 (com direito a imagem do momento preciso de contaminação da célula pelo virús) e a indicação do uso da cloroquina?
quarta-feira, 8 de abril de 2020
Da epidemia na cidade de Belém (Amazônia) de 1748 ao coronavirús de 2020
Por Antonio Otaviano Vieira Junior (UFPA)
vídeo em:
https://www.youtube.com/channel/UCku6jMkVku-g1atjk3j-QBQ?view_as=subscriber
Aqui estou em março de 2020 na cidade de Belém, na Amazônia brasileira, acuado pelo Covid-19. Em meio ao isolamento busquei no passado um interlocutor para minha realidade atual. Recuei aos anos de 1748-1750, também anos de epidemia em Belém, para estabelecer um diálogo com a atual crise epidêmica.
O direito de fala e de memória
Em Belém, durante os anos de 1748 e 1750, os contemporâneos do contágio em diversas situações falavam da doença: na saída da igreja da Sé, após a distribuição de esmolas, no mercado diante da alta do preço da farinha ou enquanto se deparavam com corpos insepultos espalhados em ruas enlameadas. Homens, mulheres, brancos, negros, índios, crianças, velhos, escravos, livres, locais, estrangeiros... muitos viveram e falaram da epidemia. Embora muitos tenham falado, poucos foram realmente escutados e menos ainda tiveram seus medos, pedidos e sentidos da epidemia registrados pela escrita. No geral, as falas sobre a epidemia de 1748 que foram escritas por proprietários de escravos indígenas, religiosos e autoridades administrativa. Outras tantas pessoas foram silenciadas, seus sentimentos nos chegaram apenas como um leve sopro, uma espécie de lapso de quem controlava as memórias.
Numa das memórias sobreviventes, nos chegou que de 3.061 mortos pela epidemia apenas 35 foram considerados brancos. Os demais eram índios. Números indicativos dos indígenas como a população mais atingida pela epidemia, aqueles que mesmo doentes eram obrigados a remar pesadas canoas, plantar roças ou a caçar para seus senhores. Então, para pensarmos epidemia de ontem, como também a de hoje, logo me veio a ideia de Michel Foucault que nos faz considerar a doença como uma construção de fala, discursiva. Parte da existência da doença era/é produto de narrativas, das falas ouvidas e registradas, e nesse processo muitos também foram/são silenciados. E para entender a existência narrativa da doença é estratégico entender quem fala. Assim, uma mesma epidemia pode ser considerada uma “gripezinha” (como afirmou o presidente do Brasil) ou uma “pandemia” (como é chamada pela OMS). As diferentes vozes que ecoam, se aproximam e se distanciam eram/são pautadas em interesses de grupos sociais específicos, de demandas econômicas e de projetos políticos. Nos ruídos do passado as vozes dos que mais morreram foram silenciadas.
A diferença para os dias de hoje pode ser na quantidade de pessoas sabem escrever e no acesso as redes sociais, que amplia o número de narrativas e narradores do Covid-19. Mesmo assim, há silêncios, alguns impostos pelas ditaduras nacionais (Coreia do Norte, por exemplo) ou simplesmente associados ao nível de alfabetização, acesso à internet e condição precária de sobrevivência (como alguns países africanos, vilas do interior da Amazônia ou moradores de rua de Nova York). Daqui a 100 anos quem terá a voz registrada, como a atual pandemia será apresentada e quem será silenciado?!
A produção não pode parar diante de uma “gripezinha”
Nas narrativas construídas sobre a doença e registradas nos documentos administrativos entre 1748-1750, um tema se constituía como principal preocupação: a economia. A morte dos indígenas em si não foi tratada como problema. Nos discursos sobre a epidemia o problema que deveria ser enfrentado era o impacto da alta mortalidade indígena na diminuição da produção econômica da região. O sentido da gravidade da epidemia revelava tensão entre os “falantes oficiais”: uns queriam atenuar o impacto do contágio e outros alegavam a gravidade da crise econômica na região.
Para este último grupo os números de mortos serviam como justificativa. Entretanto, as estimativas variavam, emergia o problema de fluxo e qualidade da informação. As contagens chegavam a variar entre 13.246 e 600.000 mortos. Para além das dificuldades das distâncias e dispersão da população em um vasto território, um governador atribuiu outra causa para a discrepância entre os números: o interesse de quem contava. Muito similar ao Covid-19, onde o presidente da república do Brasil afirma: “parece que há interesse por parte de alguns governadores de inflar o número de vitimados do vírus”. Hoje o cálculo da letalidade do coronavírus acaba sendo território de combate político; para justificar ações de políticos populistas como no Brasil e no México ou para intensificar o confinamento em países como os Estados Unidos, Itália e Espanha.
Em Belém no ano de 1749, os religiosos jesuítas foram acusados de tentar diminuir a gravidade da doença, justamente por terem ainda muitos escravos índios a sua disposição e por isso ainda conseguirem coletar produtos da floresta e estabelecer um monopólio comercial. E por isso insistiam em minimizar a gravidade da doença e evitar uma possível intervenção do rei português a favor dos colonos.
Por outro lado, os moradores brancos se aproveitavam da gravidade da epidemia para pedirem ao rei de Portugal permissão para entrar na floresta e escravizar mais índios, e com isso atenuar a pressão de Lisboa a favor do fim da escravidão indígena. Por sua vez, o rei D. José I, de Lisboa, via na epidemia uma oportunidade de legitimar a proibição do cativeiro indígena: libertar os índios era transformá-los em súditos e incrementar o uso da mão de obra de escravos africanos na Amazônia. Essa medida fortalecia o comércio de escravos vindos da África, aumentando o lucro de comerciantes negreiros que pagavam dízimos reais e até mesmo contribuindo para o crescimento comercial de Cabo Verde (que integrava o Império lusitano).
E mesmo entre aqueles que concordavam com a gravidade da doença, havia divergência sobre como solucionar os problemas por ela causados: escravidão ou não de índios. A disputa quanto o controle e legitimação do cativeiro indígena era uma tensão que acompanhava a cidade de Belém desde os primeiros anos de fundação (1616), e que ganhava um novo capítulo com a epidemia de 1748.
Isso nos faz pensar que muitas vozes e falas ao redor da letalidade da doença, poderia ser do Covid-19, podem mascarar interesses, impor desejos políticos antigos e aproveitar a ocasião para neutralizar inimigos que disputam o poder. A doença tinha (e tem) sua dimensão social e política, sendo mais grave para uns e mais lucrativa para outros. O que tem o presente para nos dizer sobre isso? No Brasil, nos EUA, na Hungria, no México, na Itália, na Rússia e em tantos outros países existem embates acerca das instâncias que devem centralizar as ações (como também quais devem ser essas ações) de combate ao coronavírus. Essas disputas se resumiriam a doença em si, ou trariam um longo rastro político? Como a sociedade civil organizada se posiciona? Qual o papel da OMS nessa crise? O que significa os EUA comprarem material médico produzido e vendido pela China?
O passado como interlocução
Entre as epidemias de 1748 e a de 2020 vimos muitas diferenças, em especial associadas a uma maior difusão de informações através da mídia e das redes sociais, um significativo avanço científico e a consolidação de instâncias internacionais de monitoramento de pandemias. Mas, a distância temporal entre esses surtos é reduzida pelas disputas de narrativas sobre o sentido da epidemia pautadas em interesses políticos e econômicos e pela preocupação em assegurar o lucro de poucos mesmo diante da morte de muitos. O passado bate no ombro do presente e mostra que apesar da invenção do microscópio e dos respiradores artificiais, o homem ainda padece em nome de vantagens financeiras e de interesses de grupos coorporativos.
vídeo em:
https://www.youtube.com/channel/UCku6jMkVku-g1atjk3j-QBQ?view_as=subscriber
Aqui estou em março de 2020 na cidade de Belém, na Amazônia brasileira, acuado pelo Covid-19. Em meio ao isolamento busquei no passado um interlocutor para minha realidade atual. Recuei aos anos de 1748-1750, também anos de epidemia em Belém, para estabelecer um diálogo com a atual crise epidêmica.
O direito de fala e de memória
Em Belém, durante os anos de 1748 e 1750, os contemporâneos do contágio em diversas situações falavam da doença: na saída da igreja da Sé, após a distribuição de esmolas, no mercado diante da alta do preço da farinha ou enquanto se deparavam com corpos insepultos espalhados em ruas enlameadas. Homens, mulheres, brancos, negros, índios, crianças, velhos, escravos, livres, locais, estrangeiros... muitos viveram e falaram da epidemia. Embora muitos tenham falado, poucos foram realmente escutados e menos ainda tiveram seus medos, pedidos e sentidos da epidemia registrados pela escrita. No geral, as falas sobre a epidemia de 1748 que foram escritas por proprietários de escravos indígenas, religiosos e autoridades administrativa. Outras tantas pessoas foram silenciadas, seus sentimentos nos chegaram apenas como um leve sopro, uma espécie de lapso de quem controlava as memórias.
Numa das memórias sobreviventes, nos chegou que de 3.061 mortos pela epidemia apenas 35 foram considerados brancos. Os demais eram índios. Números indicativos dos indígenas como a população mais atingida pela epidemia, aqueles que mesmo doentes eram obrigados a remar pesadas canoas, plantar roças ou a caçar para seus senhores. Então, para pensarmos epidemia de ontem, como também a de hoje, logo me veio a ideia de Michel Foucault que nos faz considerar a doença como uma construção de fala, discursiva. Parte da existência da doença era/é produto de narrativas, das falas ouvidas e registradas, e nesse processo muitos também foram/são silenciados. E para entender a existência narrativa da doença é estratégico entender quem fala. Assim, uma mesma epidemia pode ser considerada uma “gripezinha” (como afirmou o presidente do Brasil) ou uma “pandemia” (como é chamada pela OMS). As diferentes vozes que ecoam, se aproximam e se distanciam eram/são pautadas em interesses de grupos sociais específicos, de demandas econômicas e de projetos políticos. Nos ruídos do passado as vozes dos que mais morreram foram silenciadas.
A diferença para os dias de hoje pode ser na quantidade de pessoas sabem escrever e no acesso as redes sociais, que amplia o número de narrativas e narradores do Covid-19. Mesmo assim, há silêncios, alguns impostos pelas ditaduras nacionais (Coreia do Norte, por exemplo) ou simplesmente associados ao nível de alfabetização, acesso à internet e condição precária de sobrevivência (como alguns países africanos, vilas do interior da Amazônia ou moradores de rua de Nova York). Daqui a 100 anos quem terá a voz registrada, como a atual pandemia será apresentada e quem será silenciado?!
A produção não pode parar diante de uma “gripezinha”
Nas narrativas construídas sobre a doença e registradas nos documentos administrativos entre 1748-1750, um tema se constituía como principal preocupação: a economia. A morte dos indígenas em si não foi tratada como problema. Nos discursos sobre a epidemia o problema que deveria ser enfrentado era o impacto da alta mortalidade indígena na diminuição da produção econômica da região. O sentido da gravidade da epidemia revelava tensão entre os “falantes oficiais”: uns queriam atenuar o impacto do contágio e outros alegavam a gravidade da crise econômica na região.
Para este último grupo os números de mortos serviam como justificativa. Entretanto, as estimativas variavam, emergia o problema de fluxo e qualidade da informação. As contagens chegavam a variar entre 13.246 e 600.000 mortos. Para além das dificuldades das distâncias e dispersão da população em um vasto território, um governador atribuiu outra causa para a discrepância entre os números: o interesse de quem contava. Muito similar ao Covid-19, onde o presidente da república do Brasil afirma: “parece que há interesse por parte de alguns governadores de inflar o número de vitimados do vírus”. Hoje o cálculo da letalidade do coronavírus acaba sendo território de combate político; para justificar ações de políticos populistas como no Brasil e no México ou para intensificar o confinamento em países como os Estados Unidos, Itália e Espanha.
Em Belém no ano de 1749, os religiosos jesuítas foram acusados de tentar diminuir a gravidade da doença, justamente por terem ainda muitos escravos índios a sua disposição e por isso ainda conseguirem coletar produtos da floresta e estabelecer um monopólio comercial. E por isso insistiam em minimizar a gravidade da doença e evitar uma possível intervenção do rei português a favor dos colonos.
Por outro lado, os moradores brancos se aproveitavam da gravidade da epidemia para pedirem ao rei de Portugal permissão para entrar na floresta e escravizar mais índios, e com isso atenuar a pressão de Lisboa a favor do fim da escravidão indígena. Por sua vez, o rei D. José I, de Lisboa, via na epidemia uma oportunidade de legitimar a proibição do cativeiro indígena: libertar os índios era transformá-los em súditos e incrementar o uso da mão de obra de escravos africanos na Amazônia. Essa medida fortalecia o comércio de escravos vindos da África, aumentando o lucro de comerciantes negreiros que pagavam dízimos reais e até mesmo contribuindo para o crescimento comercial de Cabo Verde (que integrava o Império lusitano).
E mesmo entre aqueles que concordavam com a gravidade da doença, havia divergência sobre como solucionar os problemas por ela causados: escravidão ou não de índios. A disputa quanto o controle e legitimação do cativeiro indígena era uma tensão que acompanhava a cidade de Belém desde os primeiros anos de fundação (1616), e que ganhava um novo capítulo com a epidemia de 1748.
Isso nos faz pensar que muitas vozes e falas ao redor da letalidade da doença, poderia ser do Covid-19, podem mascarar interesses, impor desejos políticos antigos e aproveitar a ocasião para neutralizar inimigos que disputam o poder. A doença tinha (e tem) sua dimensão social e política, sendo mais grave para uns e mais lucrativa para outros. O que tem o presente para nos dizer sobre isso? No Brasil, nos EUA, na Hungria, no México, na Itália, na Rússia e em tantos outros países existem embates acerca das instâncias que devem centralizar as ações (como também quais devem ser essas ações) de combate ao coronavírus. Essas disputas se resumiriam a doença em si, ou trariam um longo rastro político? Como a sociedade civil organizada se posiciona? Qual o papel da OMS nessa crise? O que significa os EUA comprarem material médico produzido e vendido pela China?
O passado como interlocução
Entre as epidemias de 1748 e a de 2020 vimos muitas diferenças, em especial associadas a uma maior difusão de informações através da mídia e das redes sociais, um significativo avanço científico e a consolidação de instâncias internacionais de monitoramento de pandemias. Mas, a distância temporal entre esses surtos é reduzida pelas disputas de narrativas sobre o sentido da epidemia pautadas em interesses políticos e econômicos e pela preocupação em assegurar o lucro de poucos mesmo diante da morte de muitos. O passado bate no ombro do presente e mostra que apesar da invenção do microscópio e dos respiradores artificiais, o homem ainda padece em nome de vantagens financeiras e de interesses de grupos coorporativos.
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