Por Aldrin Figueiredo (UFPA)
video em:
https://www.youtube.com/channel/UCku6jMkVku-g1atjk3j-QBQ?view_as=subscriber
Quarentena. Não se fala em outra coisa. Parecia uma palavra perdida no tempo. Para os
historiadores, no entanto, especialmente aqueles que mexeram com a imprensa do
século XIX ou com temas enredados com as doenças e outras práticas de cura,
quarentena é palavra corriqueira. Já foram algumas pessoas que me perguntaram de
onde vem a palavra quarentena. Por que os tais quarenta dias?
Revirando literatura, memória médica, textos de jornais, romances, tratados antigos,
sempre a quarentena aparece como reclusão de indivíduos ou animais sadios pelo
período máximo de incubação (aparecimento dos sintomas) da doença, contado a partir
dos relatos sobre da data do último contato com um provável portador, ou da data em
que esse indivíduo sadio abandonou o local em que se encontrava a fonte de infecção e
daquele “mal”, como se dizia no passado.
Hoje sabemos que há considerável variação nos períodos de incubação de agentes
patogênicos. Um caso famoso na medicina são as tais proteínas (príon) agente causador
da doença de Creutzfeldt-Jakob ou Kuru, por exemplo, possuem um período de
incubação que chega a 30 anos, ou de 8 a 9 anos nos casos infantis. Na forma da doença
de Creutzfeldt-Jakob é de 18 meses em casos de transplante de córnea e pouco mais de
2 anos em casos de contaminação após uso de eletrodos intracerebrais. Essa história
inclusive ganhou o cinema.
Porém, vários historiadores, como Jean Starobinski e Roy Porter, ambos também
médicos, passando por Jacques Le Goff, reconhecido medievalista, mostraram que o
termo "quarentena" teve origem na prática de cidades portuárias medievais de manter
sem comunicação nos portos em que chegavam, durante quarenta dias, os navios
procedentes de determinadas áreas e sobretudo do Oriente. Não mudou muita coisa, a
não ser o número, pois hoje sabemos muito mais sobre toda essa variação do período
máximo de incubação da doença, além é claro das regras sanitárias, como por exemplo
“lavar bem as mãos”, prática crucial hoje, mas que no século XIX era até desaconselhada
pelos médicos e farmacêuticos.
Não é exagero dizer que a atitude de lavar as mãos revolucionou a medicina. No entanto,
havia médico no século XIX que recriminava os pajés pelos usos da água corrente
durante o parto ou em outros tratamentos de cura.
Mas, afinal, de onde vêm os 40 dias da quarentena. Na idade média, profundamente
marcada pela simbologia religiosa do cristianismo, do judaísmo e do islamismo, além do
repertório das crenças populares, o número quarenta tinha um significado profundo de
recolhimento, refúgio, resguardo. Não custa lembrar que as narrativas existiam para
confirmar tanto o mito quanto a história. O dilúvio durou 40 dias e 40 noites. Aos 40
anos, Moisés feriu um homem egípcio e teve de fugir. 40 anos mais tarde foi conduzido
a ir libertar seu povo da escravidão. Recolheu-se no monte Sinai por 40 dias e 40 noites.
Peregrinou com o povo hebreu pelo deserto por 40 anos. Elias, o profeta, esteve por 40
dias na montanha. O próprio Jesus, antes de iniciar seu ministério, jejuou por 40 dias e
40 noites, dando origem ao se convencionou como “quaresma” (quadragesima dies)
período do ano litúrgico que antecede a Páscoa cristã. Inclusive, o corona vírus nos veio
exatamente na quaresma. Mais água na fervura ou brasa na fogueira. Após sua
ressurreição, Cristo ficou 40 dias com seus discípulos. E, no Islã, Maomé, ou Muhammad,
aos 40 anos fez um retiro espiritual em que recebeu sua incumbência divina. Nem
sempre os 40 dias citados eram 40 dias realmente. Eram, no entanto, uma quarentena.
Certamente tanto o número quarenta como o termo quarentena, referidos há séculos,
continuam como expectativa de preservação da saúde da humanidade, de noções de
cura e de bem-estar, de viver entre a solidão, a solitude e o convívio social.
Temos que ouvir os médicos, inclusive também os historiadores da medicina. Aprender
no diálogo com o passado. Dá vontade de arrolar aqui algumas das milhares de
referências da quarentena na Amazônia que já topei pelos arquivos. Qualquer
regulamento portuário do século XIX aparece a quarentena em letras de destaque e
qualquer pajé ou parteira do século XIX mandava recolher a mulher que acabou de parir
num resguardo de quarenta dias, e que comesse apenas galinha com “pirão de parida”,
e tivesse cuidado com os ventos, pesos e “ramos de ar”.
Em 2016, o historiador Alinson Bashford, publicou o belo livro Quarantine: local and
global histories. Basingstoke, Hampshire: Palgrave Macmillan, 2016, reunindo vários
historiadores que trataram do tema em profundidade. O próprio organizador do livro
publicou sobre Quarentena marítima: ligando o mundo antigo e as novas histórias
mundiais, ou Jane Crawshaw que discutiu os lugares e espaços da quarentena moderna.
Alexander Chaser-Levenson, olhando para o problema atual dos refugiados na Europa,
discutiu sobre quarentena mediterrânea do início do século XIX como “sistema
europeu”, e Saurabh Mishra sobre quarenta e seus aspectos policiais em
Encarceramento e resistência em um lazaretto do Mar Vermelho, 1880-1930. O nosso
conhecido Robert Peckham, escreveu sobre os Espaços de quarentena em Hong Kong
ao tempo dos Ingleses e Hans Pols, com o apoio das imagens da história da arte e da
paisagem analisou a Quarentena nas Índias Holandesas. Por fim, Nayan Shah, Barbara
Brooks, Ryan McLane, Kavita Sivaramakrishnan, Anne Clarke, Ursula K. Frederick, Peter
Frederich, Peter Hobbins, Ingrid Sykes e Gareth Hoskins dedicaram importantes
pesquisas sobre a quarentena em contextos insulares, como nas ilhas Angel, na
California; a quarentena para doenças venéreas na Nova Zelândia, ou algo muito
próximo de hoje com a gripe e quarentena em Samoa. Também a quarentena da febre
amarela na Índia ou as paisagens solitárias da quarentena de Sydney na Austrália, ou
ainda sobre os sentidos da quarentena em Sana Ducos: o último e célebre leprosário na
Nova Caledônia. Há ainda o belo texto de Susan Burnes, sobre os testemunhos de vida
após a quarentena no Museu Nacional da Hanseníase no Japão.
Antes disso, tenho que lembrar o papel da Unicamp, especialmente minha memória é
da década de 1990 e princípio dos anos 2000, época que eu andei por lá, num formidável
grupo de historiadores, sob a batuta de Sidney Chalhoub, que publicou uma série de
estudos sobre o tema. Além do Cidade Febril, do Chalhoub, marcou também o livro Artes
e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social da medicina (2003), no qual
participo com um trabalho sobre medicina e pajelança. Muitos desses historiadores
estão nesse livro e outros com suas teses de altíssima qualidade. Invoco esse passado,
porque os historiadores, mas não só eles, estão sendo perseguidos por este governo,
por não fazermos pesquisa de interesse fundamental aos olhos de quem comanda o
país. Por isso mesmo estou aqui pra dizer que muito do que se sabe, em seus mais
profundos aspectos comparativos, se deve a grupos como este formado principalmente
em universidades públicas. Nomeio os da minha época: Carlos Galvão, Vera Beltrão (in
memoria, que saudade!), Gabriela Sampaio, Maria Leonia Resende, Regina Xavier,
Marta Almeida, Luiz Otavio Ferreira, Magali Engel, Tânia Pimenta, Jane Beltrão,
Ariosvaldo Diniz, Beatriz Weber, Liane Bertuci, Ana Paula Vosne. Pode escolher, pois aí
é coisa primeira lavra e qualidade.
E como eu estou em Belém, recomendo vivamente a leitura do livro do meu colega José
Maria Abreu Junior, que é historiador e médico patologista, e que fez um belo doutorado
em história na UFPA, o livro O vírus e a cidade: rastros da gripe espanhola no cotidiano
da cidade de Belém (1918), pesquisa de maior fôlego que conheço sobre algo em muitos
aspectos análogo ao que estamos vivendo atualmente, só que com um imensurável
número maior de mortos. O tema não me é estranho pois andei estudando médicos e
pajés no passado, e aqui e ali a quarentena aparecia como prática sanitária, profilática
ou de temor aos céus.
Lá como cá, no passado e no presente, a quarentena sempre foi para ser seguida. Talvez
a novidade seja apenas um jogo de escala, termo bem conhecido dos historiadores. E,
claro, a voracidade da informação. Se os historiadores estão por aí pra mostrar as outras
pestes, a lembrança de outros mortos, estão também a trazer ao presente o incrível
universo de luta pela vida e a esperança de cura em outros tempos e diversas partes do
mundo.
Leiam os historiadores, ouçam os médicos e profissionais de saúde e cumpram esse
resguardo social necessário. Ignorem presidentes abestalhados, pastores espertalhões,
curiosos e charlatães. Fiquem em casa, protejam-se e protejam suas famílias. 15, 20 ou
40 dias, qual for a quarenta, cumpram. Clio e Asclépio, saídos do mito, hão também de
zelar por nós, mas lavem as mãos, muito bem, com água e sabão, diversas vezes por dia.
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