terça-feira, 21 de abril de 2020

SABERES TRADICIONAIS E SABER CIENTÍFICO SOBRE AS EPIDEMIAS EM BELÉM 1650-1760

Por Décio de Alencar Guzmán (UFPA)

Em 1741 um jovem estudante português de vinte anos de idade chega em São Luiz do Maranhão para completar seus estudos na Missão jesuítica do vale amazônico. Seu nome é João Daniel. Ele vem de Lisboa. Ele quer ser padre jesuíta. Vai ser ordenado sacerdote em 1750 e faz seus votos perpétuos na Companhia de Jesus em 1757 com trinta e cinco anos de idade. Do tempo que permanece entre os Colégio dos padres em Belém e São Luiz, ele vive oito anos viajando pelos rios da Amazônia como missionário entre os índios, visitando as aldeias de missão, as fazendas dos jesuítas (Ibirajuba) e conhece as qualidades físicas da terra amazônica de muito perto. Os padres têm mais de sessenta lugares de missão espalhados pelo rio Amazonas e afluentes nessa época. Se não as visitou pessoalmente, João Daniel tem notícias de todas elas através dos seus companheiros de missão.
Assim é que através dos outros jesuítas e das suas próprias viagens João Daniel ganha informação atualizada sobre a quase totalidade do território coberto pelas missões. Seu interesse é a realidade da terra que o acolhe, porque é nomeado pelos superiores como cronista oficial da missão. Ele a descreve, a observa diretamente, coleciona, identifica, repertoria, analisa, classifica o mundo que o rodeia. É um trabalho intenso e contínuo para conhecer a geografia da Amazônia, seu clima, seus rios, madeiras e ervas, frutos comestíveis, seus animais para caça e criadouro, suas ilhas e lagos, os peixes, insetos e pragas, seus minérios.
João Daniel percebe os abusos dos portugueses na convivência com os nativos no momento das epidemias. Então registra por escrito o que viu. Em 1757 é expulso para Lisboa por ordem conjunta do Governador e do Bispo do Pará. É o momento da supressão do domínio jesuítico sobre a fronteira amazônica pelo primeiro Ministro do rei D. José I, o Marquês de Pombal. Em Lisboa, é João Daniel confinado com outros jesuítas nos cárceres de Almeida e de São Julião da Barra, onde morre em 9 de janeiro de 1776. Dos anos na prisão deixa mais de 766 páginas manuscritas às quais intitula “Tesouro Descoberto no Rio Amazonas”. Uma série de seis tratados interligados com anotações que se posicionam na dinâmica do campo cultural da ciência jesuítica do século XVIII: no cruzamento entre o discurso científico europeu, as escolas jesuíticas e o contexto político colonial mais amplo.
Como jesuíta, João Daniel tem o dever de catequizar os índios. É sua missão, sua vocação. Ele visita alguns grupos indígenas ao longo dos rios e recolhe informação sobre muitos deles entre 17. Investiga seus costumes, suas qualidades morais e traços humanos: suas guerras, religiões, línguas, habilidades e realizações manuais e intelectuais. Mas sobretudo dois aspectos da vida deles chama a atenção de João Daniel: as doenças e as epidemias. Mas por quê? Segundo ele, desses flagelos os indígenas são “muito mortais”, ou seja, daí vêm a maior razão de sua extinção em massa.
Quais são então essas doenças? De que os índios morrem coletivamente?
A cadeia mais geral das moléstias que os atacam inaugura-se com os resfriamentos (gripes). Daí provêm, em segundo lugar, os catarros que degeneram em esquinências (anginas, com inflamações sufocantes da garganta e da faringe), garrotilhas (inflamação aguda da mucosa da laringe, traqueia e brônquios, de origem viral, sobretudo em lactantes e crianças pequenas) e pleurises (inflamação aguda da pleura, de origem bacteriana). Logo todos se contagiam e morrem nalguns dias. João Daniel chama atenção para o efeito psicológico nefasto destas epidemias: “(...) são muito desanimados, e em apreendendo que morrem é infalível a morte”. Em terceiro lugar vêm as bexigas (varíola). Esse mal abate sobretudo índios e negros, ainda mais que aos brancos, embora ele tampouco não poupe alguns europeus. Por último vêm o sarampão (erupção cutânea aguda avermelhada provocada por vírus ou coco) seguido de grandes diarreias que extermina milhares de indivíduos.
Os ciclos de epidemias se repetem em média a cada 8 anos a partir de 1690: 1621 (varíola e sarampo), 1649/1652 (varíola), 1662 (varíola e sarampo), 1690 (varíola e sarampo), 1695 (varíola), 1724/1725 (varíola e sarampo), 1737/1740 (varíola e sarampo), 1748/1749 sarampo (“sarampo grande”) e 1790 sarampo (“sarampo grande”).
Os tempos de epidemias são crises que revelam todo o mecanismo social por dentro, sua estrutura de explorações, oportunismos e injustiças. Na Amazônia dos séculos XVII e XVIII os nativos são essenciais para a vida econômica funcionar. A sociedade colonial vive do seu sangue. São também eles os mais visados pela morte. As epidemias são seletivas, porque dizimam sobretudo os pobres. Na epidemia de 1748 milhares de indígenas fogem de Belém, Vigia, Cametá e outro centros porque a peste é essencialmente urbana. Vão para os matos do interior, longe dos brancos portugueses. O padre João Daniel revela os dois principais vetores das doenças para os índios: os militares e os comerciantes. Estes usam todas as manobras para atender “seus negócios e conveniências”, inclusive o abuso de poder para movimentar a economia e não perder dinheiro. Situação em tudo semelhante à atual epidemia de Coronavírus.
Os usos de remédios para curar e tratar estas doenças revelam a tensão entre o saber nativo (“remédios caseiros”) e o saber científico europeu (“remédios da arte médica”). João Daniel era “físico” conhecedor das artes médicas. Ele cita em seu “Tesouro” dois receituários famosos no século XVIII: O “Erário Mineral” (Lisboa, 1735) e o “Boticário do Amazonas”. Conhece também a famosa “Pharmacopea Lusitana” (Lisboa, 1704). Em suas terapias para os catarros e as outras doenças João Daniel prescreve os suadouros e as sangrias para expelir o frio do corpo e excitar o calor em acordo com as teorias europeias dominantes hipocrático-galênicas da época. Porém na composição dos remédios sabe valorizar os remédios caseiros: aguardente da cabeça, o chá da raiz de pajé merioba, o extrato de alcaçuz bravo, as castanhas de cavalo frescas, o cipó padú, erva de santa maria, andiroba, copaíba, e a lista é grande.
João Daniel zomba de um português teimoso por não acreditar nas propriedades medicinais dos remédios caseiros dos índios do Pará quando sofre com dores de catarros. O português diz preferir os poderes curativos das artes médicas europeias e despreza as indígenas por julga-las ineficazes. Após dias de sofrimento com os catarros, o português cede a teimosia e usa as castanhas de cavalo frescas borrifadas com água, obtendo a cura. “Cabeçudo”, diz o jesuíta, já teria experimentado alívio se não fosse obstinado.
João Daniel não está só como “físico”, há muitos outros jesuítas especialistas das artes médicas na missão do Maranhão: o irmão leigo Manoel de Andrade, irmão Francisco Cabral, irmão Rafael Cardoso, irmão Domingos Coelho, irmão André da Costa, irmão Clemente Ferreira, padre Manoel da Fonseca, irmão Francisco da Gaia, irmão Manoel Girão, padre Francisco Gonçalves, irmão Romão José, irmão Manuel Lopes, irmão Caetano de Oliveira, padre João Carlos Orlandini, padre António Pereira, irmão João Pereira, irmão José Pereira, irmão Manuel Pereira, padre Luís Pinheiro, irmão Manuel Rodrigues, irmão António Vieira , todos farmacêuticos e enfermeiros.
Através do tratado de João Daniel e das cartas trocadas entre os missionários do Pará com os seus superiores de Roma ou Lisboa, aprendemos como os jesuítas agem nos tempos de epidemia e como a Companhia de Jesus coordena suas atividades quando as comunicações por barco ainda são restritas e difíceis. Vemos nesses documentos que o fatalismo e a busca pela abnegação geralmente acompanhavam surtos das doenças: alguns jesuítas encontraram consolo e oportunidade de “morrer bem” (como mártires), principalmente se a doença é contraída por meio de serviços aos aflitos. Outros procuram abordar os sintomas das doenças e preservar indivíduos saudáveis de seus estragos. Esse pragmatismo, derivado das ordens de Inácio de Loyola para evitar penitências corporais excessivas e preservar o corpo para melhor servir a Deus, é interpretado por alguns como um sinal de compromisso religioso fraco. A ordem rival dos franciscanos atrai grande crédito nessa época pelas suas incursões suicidas nos Lazaretos (hospitais), onde os doentes aguardam a morte. Já a relutância dos jesuítas em pôr em risco igualmente os seus padres e irmãos enfermeiros é interpretada pelos colonos portugueses e pelos índios como covardia e amor excessivo a esse mundo.
Até que ponto os jesuítas são "modernos", ou secularizados e empíricos, na sua abordagem das doenças epidêmicas? Os documentos revelam que o compromisso religioso jesuíta não oculta o que poderíamos interpretar como uma perspectiva "científica". A teoria médica jesuíta distingue entre causas primárias e secundárias. A ação divina produz a peste como advertência ou punição da humanidade desviada pelo pecado. Os jesuítas promovem os remédios religiosos “padrão”: a conversão, a oração e a penitência. Mas as causas secundárias, incluindo fatores naturais e artificiais, como ar pestilento, a água suja e a aglomeração de pessoas afetadas pedem diferentes respostas terapêuticas, mudanças na dieta e condições físicas para a remoção daqueles vulneráveis a doenças. Os jesuítas estão cientes de que a mortalidade pode ser limitada por ação corretiva rápida, muitos jesuítas estão convencidos de que a ajuda física é tão importante como o socorro espiritual.
Nos séculos XVII e XVIII se afirma na Europa um tipo de saber científico classificado pelo nome de história natural. Este saber é um embrião das atuais ciências da vida, tal como as chamamos hoje: a biologia (e suas ramificações específicas: a zoologia e a botânica), a genética, a anatomia, as neurociências, etc. Essa história natural se encarregou de estabelecer princípios do conhecimento a serem definidos, explicados e demonstrados sobre as semelhanças e diferenças entre os seres, sua estrutura visível, suas características específicas e gerais, sua possível classificação na ordem dos seres vivos, as descontinuidades que os separavam e as transições que os uniam. A história natural foi um saber ordenador, classificador, gramatizador. Foi um saber positivo para o qual os homens ao seu serviço deviam construir princípios e causas coerentes dos fenômenos naturais, fazer descrições exatas desses fenômenos, confirmar sua existência, desenvolver teorias sobre eles. As Academias de Ciências estatais e oficiais foram o lugar institucional de produção e legitimação política e social da história natural. Roma teve a sua Academia em 1603, a Alemanha (Berlim) em 1652, na França a Academia fundou-se em 1666, a Prússia em 1700, Portugal em 1779.
O Estado promove os primeiros passos da sua biopolítica. As epidemias são o momento de aplicação dessa biopolítica. Um exemplo disso provém das medidas de isolamento, quando se declara oficialmente a peste numa cidade no século XVII, de acordo com um regulamento resumido por Michel Foucault: decreta-se o policiamento espacial estrito, o fechamento da cidade e das suas estradas, a proibição de sair sob pena de morte, divisão da cidade em quarteirões onde se estabelece o poder de um intendente. Cada rua é posta sob a autoridade de um prefeito; ele a vigia; se deixar seu posto, será punido com a morte. No dia designado, ordena-se a todos que se fechem em suas casas: é proibido sair sob pena de morte. O mesmo prefeito vem fechar por fora a porta de cada casa; leva a chave consigo, e a entrega ao intendente do quarteirão; este a conserva até o fim da quarentena. Cada família deve fazer as suas provisões, mas para o pão e o vinho são preparados entre a rua e o interior das casas pequenos canais de madeira, que permitem fazer chegar a cada um a sua ração, sem comunicação entre fornecedores e os habitantes; para a carne, o peixe e as verduras utilizam-se roldanas e cestas. Se for muito necessário sair das casas, isso se fará por turnos, e sem qualquer encontro. Só circulam os prefeitos, os intendentes, os soldados da guarda e também entre as casa infectadas, de um cadáver ao outro, os “coveiros”, que tanto faz se morrem ou não: é “gente vil, que leva os doentes, enterra os mortos, limpa e faz muitos ofícios vis e abjetos”. A inspeção funciona sem parar. “Um corpo de milícia; a comandado por oficiais e gente do bem”, guardas nas portas, na prefeitura e em todos os bairros pra tornar mais pronta a obediência do povo, e mais absoluta a autoridade dos magistrados, “assim como para vigiar todas as desordens, roubos e pilhagens”. (...) essa vigilância se apoia num sistema de registro permanente: relatórios dos síndicos aos intendentes, destes aos almotaceis e ao prefeito. No começo da “apuração” se estabelece o papel de todos os habitantes (...): se anotam “o nome, a idade, o sexo, sem exceção de condição” (...). Tudo o que é observado durante as visitas, mortes, doenças, reclamações, irregularidades, é anotado e transmitido aos intendentes e magistrados. Estes tem o controle dos cuidados médicos e um médico responsável; (...) O registro do patológico deve ser constante e centralizado. A relação de cada um com sua doença e sua morte passa pelas instâncias do poder, pelo registro que delas é feito, pelas decisões que elas tomam.
Este é um regulamento de isolamento típico da cidade de Vincennes no século XVII. Ele descreve as providências oficiais por ocasião da peste. O nosso presente já está prefigurado aí. Mas quais são as diferenças entre nós homens do século XXI e eles?

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