domingo, 12 de abril de 2020

Mortes, sepultamentos e desigualdades em tempos de epidemias

Por Roberta Sauaia Martins (SEDUC-PA/ PPHIST-UFPA)

Recentemente, imagens de corpos abandonados pelas avenidas de Guayaquil no Equador circularam nas redes sociais e são uns dos resultados da atual pandemia de Covid-19. Os cidadãos equatorianos, em pedidos de auxílio para enterrarem de forma digna seus mortos, denunciam que o sistema funerário entrou em colapso e os cemitérios não possuem capacidade para tamanha demanda.
No passado, entre 1776 a 1778, a cidade de Belém foi palco de outra epidemia; de bexiga (termo atribuído de forma genérica à varíola). Num cenário marcado pela grande quantidade de mortes já não “havia nas Igrejas sepulturas que não estivessem cheias”, relatou com grande preocupação o então bispo do Pará. Aliás, não era a primeira vez que o problema em relação aos cadáveres insepultos se fazia sentir na cidade, pois em um outro momento epidêmico (“Grande sarampo”- 1748-1750) corpos de escravos poderiam ser avistados nas frentes de igrejas, lançados “às feras nos matos”, outros jogados ao mar, ou mesmo “expostos à misericórdia dos vivos”. Dentro da lógica cristã, de um modo geral, o enterro no abrigo das igrejas, por exemplo, era visto como uma das estratégias de salvação da alma, pois, nesses espaços se estaria mais próximo a Deus, não rompendo totalmente com o mundo dos vivos. Importante lembrarmos que na cidade de Belém, somente a partir de 1850 os sepultamentos passaram a ocorrer regularmente nos cemitérios civis.
Pior do que não poder ser enterrado dentro das igrejas era não ter onde ser enterrado. Em 1777, durante as “bexigas”, um cemitério foi construído aos arredores da cidade. A ordem veio dos vereadores de Belém, e o espaço foi feito de maneira rudimentar e às pressas, sequer contava com um muro que o cercasse. Indígenas e escravos, as principais vítimas das bexigas, poderiam ter seus corpos expostos a céu aberto e alvos do apetite de animais. Parece que o “bom morrer” não era, assim, reservado a todos de forma igualitária na Belém de outrora. Mas, será que essa é uma realidade circunscrita somente ao passado?
A história nos indica que passado e presente se conectam a partir de inúmeras tramas, rupturas, mas também de permanências. Processos que se repetem, como as diferentes epidemias, ainda que em tempos e sociedades tão distintas e demandam ações: como o cuidado com os mortos. E mais do que isso, em momentos críticos, tornam-se ainda mais visíveis e aprofundam-se as desigualdades e mazelas sociais já existentes.
Em Nova York mandou-se cavar covas coletivas para dar conta das mortes que têm crescido em ritmo acelerado por conta do Covid-19. Como não citar ainda Bérgamo, na Itália, onde os cemitérios, igrejas e crematórios já não suportam o alto número diário de vítimas da atual pandemia.
Em Belém de hoje, em um pronunciamento realizado via redes sociais pelo atual prefeito, no dia 9 de abril, foi noticiada a proposta de se construir um cemitério especificamente para enterrar os mortos pelo novo coronavírus: A ideia é realizar tal projeto no bairro do Tapanã, na periferia da cidade, no qual já existe um cemitério em condições precárias, sem manutenção regular e até mesmo com sepulturas expostas. A comunidade do bairro, a qual denuncia também problemas de saneamento básico, teme pelo possível futuro caótico: alastrar da enfermidade e piorar ainda mais a delicada situação vivenciada pelos moradores do entorno do cemitério. Quem seriam os mortos enterrados nesse possível novo cemitério? Quais pessoas seriam as mais afetadas por esse projeto? São respostas que ainda não temos. Contudo, o presente e o passado já nos dão pistas importantes de como os impactos das epidemias podem ser sentidos de forma desigual.
Ontem e hoje o direito a um sepultamento minimamente digno é negado a homens e mulheres, sejam indígenas, escravos, mestiços, desabrigados, gente pobre, a arraia miúda, entre outros. Seus nomes, suas dores, histórias de vida, seus sonhos e desafios são silenciados. As epidemias não apenas acabaram com suas vidas, como escancararam os locais marginalizados e desiguais reservados a eles nas sociedades.

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